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YVONNE BEZERRA DE MELLO - FINALISTA
Pedagogia do trauma
Educadora formula metodologia para o desbloqueio cognitivo de crianças em situações de violência das ruas pelas crianças
GABRIELA ROMEU
ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO
Numa pequena sala de aula
localizada num conjunto de
casinhas ligadas por becos, a
educadora Yvonne Bezerra de
Mello, 61, começa a manhã com
a tarefa de retirar "todo o lixo
da violência acumulado dentro
das crianças" do complexo da
Maré, maior aglomerado de
favelas do Rio de Janeiro.
É falando abertamente de
mazelas locais, como guerra
entre facções e invasão do
"caveirão", que a fundadora do
Projeto Uerê exercita um dos
passos da metodologia desenvolvida em 38 anos de atuação
com a infância em situação de
risco social. Bem poderia se
chamar pedagogia do trauma.
"Tia Yvonne", como é carinhosamente chamada pelas
2.250 crianças que já atendeu
(nas ruas e na Maré), já percorreu uma trajetória de perdas
até chegar ao Uerê, na Baixa
do Sapateiro, região disputada
por três facções criminosas.
"Enterrei 366 crianças", contabiliza, sem titubear nem demonstrar emoção. Oito dessas
perdas ocorreram na chacina
de Candelária, em 1993, quando ainda era educadora de rua.
Na época, conviveu com Sandro Nascimento, que, em 2000,
protagonizou a saga do ônibus
174, a qual foi parar no cinema.
"É a típica história do menino
pobre, sem mãe, que, quando
seu mundo desaba, não tem
proteção social", diz a filóloga.
Outros Sandros
São muitos os Sandros que
encontrou desde o tempo de
menina, quando, aos 12 anos,
resgatou sozinha em um banheiro o bebê deixado por uma
prostituta que acabara de dar à
luz. Virou seu irmão adotivo.
Filha de pai negligente ("um
playboy que cedo abandonou a
família"), Yvonne diz que sua
trajetória pessoal ajuda a compreender a vida dessas crianças, muitas sem filiação paterna na certidão de nascimento.
"Entendo-as perfeitamente.
Se eu tivesse nascido rica, seria
uma boa mulher de caridade",
diz Yvonne, que viveu com a
nobreza sueca e hoje faz parte
da alta sociedade carioca, a
mesma que a acusa de "educar
bandidos para matar a classe
média". Levou cuspida e recebeu ameaça. Mas não revida.
"Funciona assim: enquanto
você faz projeto que dá comida,
você é ótima, é Madre Teresa
de Calcutá", ironiza. "Mas não é
isso que eu faço. Educo esses
meninos da favela para que eles
possam competir com os garotos da zona sul", completa.
É por isso que, todos os dias,
os educadores usam 11 momentos da metodologia Uerê-Mello, de até 20 minutos cada
uma, para que os alunos não
percam o foco. Aprendem, assim, português, matemática,
história, esportes e idiomas.
Objetiva, Yvonne não embarga a voz ao desfiar as diversas
histórias trágicas de crianças
com quem convive. "Tento separar a emoção do trabalho."
Confessa, no entanto, que
vez ou outra chora sozinha.
"Choro por causa da solidão. É
porque é um trabalho muito solitário, pouco compreendido."
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