São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2008

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YVONNE BEZERRA DE MELLO - FINALISTA

Pedagogia do trauma

Educadora formula metodologia para o desbloqueio cognitivo de crianças em situações de violência das ruas pelas crianças

GABRIELA ROMEU
ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

Numa pequena sala de aula localizada num conjunto de casinhas ligadas por becos, a educadora Yvonne Bezerra de Mello, 61, começa a manhã com a tarefa de retirar "todo o lixo da violência acumulado dentro das crianças" do complexo da Maré, maior aglomerado de favelas do Rio de Janeiro.
É falando abertamente de mazelas locais, como guerra entre facções e invasão do "caveirão", que a fundadora do Projeto Uerê exercita um dos passos da metodologia desenvolvida em 38 anos de atuação com a infância em situação de risco social. Bem poderia se chamar pedagogia do trauma.
"Tia Yvonne", como é carinhosamente chamada pelas 2.250 crianças que já atendeu (nas ruas e na Maré), já percorreu uma trajetória de perdas até chegar ao Uerê, na Baixa do Sapateiro, região disputada por três facções criminosas.
"Enterrei 366 crianças", contabiliza, sem titubear nem demonstrar emoção. Oito dessas perdas ocorreram na chacina de Candelária, em 1993, quando ainda era educadora de rua.
Na época, conviveu com Sandro Nascimento, que, em 2000, protagonizou a saga do ônibus 174, a qual foi parar no cinema. "É a típica história do menino pobre, sem mãe, que, quando seu mundo desaba, não tem proteção social", diz a filóloga.

Outros Sandros
São muitos os Sandros que encontrou desde o tempo de menina, quando, aos 12 anos, resgatou sozinha em um banheiro o bebê deixado por uma prostituta que acabara de dar à luz. Virou seu irmão adotivo.
Filha de pai negligente ("um playboy que cedo abandonou a família"), Yvonne diz que sua trajetória pessoal ajuda a compreender a vida dessas crianças, muitas sem filiação paterna na certidão de nascimento.
"Entendo-as perfeitamente. Se eu tivesse nascido rica, seria uma boa mulher de caridade", diz Yvonne, que viveu com a nobreza sueca e hoje faz parte da alta sociedade carioca, a mesma que a acusa de "educar bandidos para matar a classe média". Levou cuspida e recebeu ameaça. Mas não revida.
"Funciona assim: enquanto você faz projeto que dá comida, você é ótima, é Madre Teresa de Calcutá", ironiza. "Mas não é isso que eu faço. Educo esses meninos da favela para que eles possam competir com os garotos da zona sul", completa.
É por isso que, todos os dias, os educadores usam 11 momentos da metodologia Uerê-Mello, de até 20 minutos cada uma, para que os alunos não percam o foco. Aprendem, assim, português, matemática, história, esportes e idiomas.
Objetiva, Yvonne não embarga a voz ao desfiar as diversas histórias trágicas de crianças com quem convive. "Tento separar a emoção do trabalho."
Confessa, no entanto, que vez ou outra chora sozinha. "Choro por causa da solidão. É porque é um trabalho muito solitário, pouco compreendido."


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