São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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público x privado

Setor privado dá vantagem à Índia sobre a China

Grau de presença do Estado na economia e abertura ao capital estrangeiro marcam diferenças entre modelos chinês e indiano, na opinião de professor de Harvard

DA REPORTAGEM LOCAL

A China é mais aberta que a Índia ao investimento estrangeiro, mas isso reflete a fragilidade do setor privado do país e sua dificuldade em obter financiamento no sistema bancário local, na opinião do indiano Tarun Khanna, professor da Harvard Business School. Segundo ele, o principal desafio diante do governo chinês é criar instituições que permitam o desenvolvimento das empresas privadas. A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha por telefone. (CLÁUDIA TREVISAN)

 

FOLHA - Quais são as diferenças entre os modelos chinês e indiano?
TARUN KHANNA
- Há duas grandes diferenças. A primeira é a natureza e a extensão do envolvimento governamental na economia. Na Índia, o governo e o setor privado são duas entidades claramente separadas.
Na China, muitas empresas pertencem a alguma forma de combinação entre diferentes níveis de governo e investidores privados, locais ou estrangeiros. É muito difícil dizer que determinada empresa pertence ao governo ou ao setor privado.
Eu não estou dizendo que o envolvimento governamental na China é ruim. Muitas das boas companhias chinesas que estão se internacionalizando conseguiram isso graças ao apoio ativo do governo.
A outra diferença é o grau de abertura ao investimento externo. A China tem sido bem mais aberta do que a Índia, desde 78. A Índia está mais aberta agora, mas certos setores ainda são totalmente fechados.
A Índia depende muito menos de investimentos estrangeiros, e vemos muito mais empresas privadas locais. Os direitos de propriedade privada são respeitados há muito tempo. Os empreendedores locais podem listar suas empresas na Bolsa, captar dinheiro e se tornar grandes empresas.

FOLHA - Quais são as conseqüências dessa diferença?
KHANNA
- O investimento estrangeiro flui muito mais facilmente para a China. No ano passado, foram cerca de US$ 60 bilhões, comparados a algo em torno de US$ 6 bilhões para a Índia. Mas apenas comparar esses números não é um exercício muito sensato.
Suponha que você seja um ocidental e queira investir em um setor particular na Índia ou na China. Na Índia, você tem a opção de ir à Bolsa e comprar ações daquele setor, como faria em Londres ou Nova York.
Na China, você não faria isso, porque o mercado acionário não funciona bem e a regulamentação é falha. Por isso, talvez tenha que investir diretamente. Para comparar os dois países, o melhor seria contabilizar investimentos estrangeiros diretos e em portfólio.

FOLHA - A Índia tem instituições mais sólidas para permitir o desenvolvimento do setor privado?
KHANNA
- Não há nenhuma dúvida em relação a isso. Creio que o mercado financeiro é onde isso é mais claro. O mercado acionário na Índia funciona muito bem, provavelmente melhor que o de qualquer outro mercado emergente.
Na China, ele é completamente não-funcional, porque o governo impõe várias restrições. A decisão sobre quem é autorizado a listar ações em Bolsa ainda é conseqüência de um exercício político. O mercado de ações continua a ser usado para canalizar dinheiro a companhias estatais. Se as empresas privadas pudessem estar na Bolsa, isso ameaçaria o acesso ao capital pelas estatais, e a eventual falência delas poderia causar instabilidade.
Pelas mesmas razões, os bancos ainda estão em situação delicada. Na Índia, os bancos são de dois tipos: muitos ainda estão em situação bastante ruim, especialmente os que têm muitos investimentos estatais.
Mas nos últimos 5 a 7 anos surgiram ao menos três, cinco, dez bancos no setor privado são próximos de "world class". Eles competem no mercado global por acesso a fundos, são negociados em Bolsas globais e usam tecnologia de ponta.

FOLHA - Mas os investidores estrangeiros não parecem preocupados com a situação dos bancos chineses, já que estão colocando rios de dinheiro em vários deles.
KHANNA
- Isso me intriga, mas faz sentido para alguns bancos comprar participações em grandes bancos ou companhias de seguros da China. São investimentos seguros, que contam com o apoio do governo.
Ao mesmo tempo, se os bancos forem saneados, a possibilidade de ganho é bastante alta. É uma combinação de um grau razoável de segurança somado à idéia de que "se nós não comprarmos, alguém vai comprar".
Mas o fato de eles estarem investindo não significa que considerem os bancos bem administrados. Até recentemente, os quatro grandes bancos não eram autorizados a emprestar dinheiro ao setor privado, só para empresas estatais.

FOLHA - Até quando isso vigorou?
KHANNA
- Não estou muito seguro, mas até quatro ou cinco anos atrás. Se você é um empreendedor privado e quer abrir um negócio, como você faz? Há poucas opções. Você recorre aos amigos e à família ou, o que é bastante estranho, recebe investimento estrangeiro.
Mesmo para uma pequena empresa, faz mais sentido conseguir dinheiro com investimentos externos. Isso nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo. Normalmente, o investimento estrangeiro direto vai para empreendimento grandes, complicados, desafiadores do ponto de vista tecnológico.
Nesse cenário, o investimento estrangeiro sobe e todo mundo diz "uau, isso deve ser bom". Mas ele pode estar aumentando por motivos ruins.

FOLHA - Quais as conseqüências desse cenário no longo prazo?
KHANNA
- É uma questão em aberto. Eu penso que o modelo chinês é muito impressionante. Sob certos aspectos, não há nada de errado com ele.

FOLHA - Quais aspectos?
KHANNA
- A pobreza diminuiu, as pessoas têm acesso a bens de consumo. Os resultados são bem melhores que os da Índia, em termos de redução da pobreza e aumento da renda.
A questão que deve ser formulada é se faz sentido um país sistematicamente não permitir o desenvolvimento de empreendedores privados locais.

FOLHA - Isso está mudando, não?
KHANNA
- Sim, está. O melhor cenário para a China é que o país comece a flexibilizar as restrições aos investidores privados domésticos, agora que as necessidades básicas da população estão satisfeitas.
O desafio é que o Partido Comunista tem de estar muito confiante de que isso acontecerá sem ameaças à estabilidade.
Dependendo do número que você aceite, ainda há de 100 milhões a 200 milhões de pessoas na zona rural que tentam ir para a costa em busca de empregos. Se o governo relaxar as restrições aos empreendimentos privados e permitir que os bancos estatais quebrem, você terá nas ruas mais milhões de pessoas que trabalham nas estatais eventualmente fechadas.

FOLHA - As estatais não podem desempenhar o papel que o setor privado tem em outros países?
KHANNA
- Como disse, não há uma clara separação entre os setores público e privado. Muitas das empresas que têm alguma forma de participação governamental são bastante eficientes. Outras não.
Elas têm pouco investimento em tecnologia, uma força de trabalho que não está acostumada a competir no mercado e recebem dinheiro de bancos quebrados, que não recusam empréstimos a elas. Nessas circunstâncias é difícil ver que as estatais se tornarão eficientes.

FOLHA - O investimento na China é ineficiente?
KHANNA
- Sim, a alocação de recursos é ineficiente. O dinheiro não está indo para os melhores usos possíveis. Outros países recebem menos dinheiro, mas o utilizam melhor.

FOLHA - O sr. diria que um dos maiores desafios da China é o desenvolvimento do setor privado?
KHANNA
- É o principal desafio.

FOLHA - Quais são os riscos, caso isso não seja feito?
KHANNA
- Não creio que haja eventos dramáticos. Mas a habilidade da China em responder a eventuais choques é bastante dependente de investimentos do exterior.

FOLHA - Quais são os riscos diante da Índia?
KHANNA
- O risco de algo realmente ruim acontecer na Índia é pequeno. Ao mesmo tempo, não creio que o país terá crescimento de 10% ou 12%. Vai ter um crescimento saudável, de 7% a 8%. Como a Índia tem um setor privado mais forte, ela tem mais habilidade de se ajustar a choques, como os EUA.

FOLHA - A Índia pode ultrapassar a China?
KHANNA
- Creio que a resposta é sim, porque os fundamentos são mais robustos, mas não acredito que isso seja óbvio. Certamente isso não ocorrerá nos próximos dez anos, mas se você falar em 25 anos, sim.

FOLHA - Existem elementos dos modelos chinês e indiano que podem ser aproveitados pelo Brasil?
KHANNA
- Creio que o Brasil é um "mix" da Índia e da China. Há muitas multinacionais e há companhias locais. Na Índia, ainda faltam as multinacionais e, na China, empresas locais. O Brasil tem ambas, o que é mais sólido. O problema com o Brasil é que ele está na América Latina, que tem grande incerteza macroeconômica.
Se você olhar para a Índia e a China, a macroeconomia é bastante estável. Minha impressão em relação ao Brasil é a de que isso não ocorre. Se você vai abrir uma fábrica no Brasil, você estará constantemente preocupado com taxa de juros, inflação e incerteza cambial.


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