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"Estagnação cria identidade racial"
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O travamento da expansão econômica que o país viveu até o fim
dos anos 70 gerou um aumento
da "racialização" das relações sociais no país, afirma o historiador
Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com a revolução tecnológica, o
trabalho barato não é mais suficiente para permitir ascensão social e miscigenação. Aumenta, como reação, ele diz, a "identificação étnica" (nos anos 90, volta a
aumentar o número de pessoas
que se declaram negros e cai a fatia que se declara "pardo").
A seguir, trechos da entrevista.
Folha - O que diz da sociedade
brasileira -ou dos recenseadores- a evolução da proporção de
brancos, negros e pardos ao longo
do último século?
Florentino - A tendência demográfica da República tem sido de
crescimento do segmento mestiço -genericamente chamados
de "pardos"- em claro detrimento de brancos e negros. Tal
movimento se reafirmou sobretudo a partir do fim das grandes migrações de europeus para o Brasil
e da adoção da autodefinição de
cor nos censos nacionais.
Se pensarmos que semelhante
padrão fincou raízes em um período em que o PIB cresceu a uma
média de quase 7% ao ano, porém
mantendo um altíssimo padrão
de desigualdade, concluiremos
que de algum modo a expansão se
deu por meio da exclusão social, e
que, apesar disso, miscigenação e
desigualdade conseguiram conviver bem, obrigado.
Sobretudo depois da Revolução
de 1930 e até o fim do governo
Geisel, a economia em expansão
permitiu a muitos ascenderem na
hierarquia socioeconômica tendo
por base tão somente o trabalho
barato, o que continuamente elevava o negro da pele da base da pirâmide aos estratos mais embranquecidos e ricos do topo, em um
movimento que tornava cada vez
mais mestiça a população como
um todo e, ao mesmo tempo, reafirmava o status quo excludente.
O Lula torneiro-mecânico e líder
fabril é de certo modo um exemplo típico desse movimento.
Folha - Como se explica o travamento das taxas de crescimento
até o final dos anos 70?
Florentino - Para além dos aspectos intrinsecamente financeiros, não surpreende que a revolução tecnológica pela qual o mundo passa nos últimos 25 anos tenha marcado o início do fim do
ciclo expansionista brasileiro.
Menos ainda que os 10% mais ricos de nossa população tenham
aumentado sua participação na
renda nacional, com queda de
20% do salário médio real de 1980
a 2000. É que, entre nós, mais do
que muitas culturas ocidentais,
também na retração econômica a
conta da crise é paga de modo desigual, incrementando a exclusão.
De modo absolutamente esperável, o travamento da mobilidade social, antes afiançada pelo trabalho barato e desqualificado,
tem diminuído a miscigenação e
igualmente o comprometimento
com o status quo excludente. Prova disso é que nos últimos dez
anos muitos buscam na afirmação étnica -não importa se putativa ou real- o meio mais eficaz
de fugir da pobreza extrema ou da
situação de lumpemproletariado
e de ter acesso à cidadania.
Eis o que explica o recente aumento da participação de negros
e brancos em nossa população,
em detrimento dos pardos, em
uma cada vez mais intensa racialização das relações sociais entre
nós. Tampouco surpreende que
Lula tenha sido eleito presidente e
de modo tão contundente. Pensando bem, nada expressa tão
bem a crise brasileira.
Folha - Por que não surpreende?
Florentino - A eleição de Lula teria sido impossível se o país estivesse bem, isto é, reproduzindo-se desigualmente, mas permitindo a mobilidade social conservadora. Logo, Lula não é signo da
crise: ele é a crise.
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