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São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2003

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"Estagnação cria identidade racial"

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O travamento da expansão econômica que o país viveu até o fim dos anos 70 gerou um aumento da "racialização" das relações sociais no país, afirma o historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com a revolução tecnológica, o trabalho barato não é mais suficiente para permitir ascensão social e miscigenação. Aumenta, como reação, ele diz, a "identificação étnica" (nos anos 90, volta a aumentar o número de pessoas que se declaram negros e cai a fatia que se declara "pardo").
A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - O que diz da sociedade brasileira -ou dos recenseadores- a evolução da proporção de brancos, negros e pardos ao longo do último século?
Florentino -
A tendência demográfica da República tem sido de crescimento do segmento mestiço -genericamente chamados de "pardos"- em claro detrimento de brancos e negros. Tal movimento se reafirmou sobretudo a partir do fim das grandes migrações de europeus para o Brasil e da adoção da autodefinição de cor nos censos nacionais.
Se pensarmos que semelhante padrão fincou raízes em um período em que o PIB cresceu a uma média de quase 7% ao ano, porém mantendo um altíssimo padrão de desigualdade, concluiremos que de algum modo a expansão se deu por meio da exclusão social, e que, apesar disso, miscigenação e desigualdade conseguiram conviver bem, obrigado.
Sobretudo depois da Revolução de 1930 e até o fim do governo Geisel, a economia em expansão permitiu a muitos ascenderem na hierarquia socioeconômica tendo por base tão somente o trabalho barato, o que continuamente elevava o negro da pele da base da pirâmide aos estratos mais embranquecidos e ricos do topo, em um movimento que tornava cada vez mais mestiça a população como um todo e, ao mesmo tempo, reafirmava o status quo excludente. O Lula torneiro-mecânico e líder fabril é de certo modo um exemplo típico desse movimento.

Folha - Como se explica o travamento das taxas de crescimento até o final dos anos 70?
Florentino -
Para além dos aspectos intrinsecamente financeiros, não surpreende que a revolução tecnológica pela qual o mundo passa nos últimos 25 anos tenha marcado o início do fim do ciclo expansionista brasileiro. Menos ainda que os 10% mais ricos de nossa população tenham aumentado sua participação na renda nacional, com queda de 20% do salário médio real de 1980 a 2000. É que, entre nós, mais do que muitas culturas ocidentais, também na retração econômica a conta da crise é paga de modo desigual, incrementando a exclusão.
De modo absolutamente esperável, o travamento da mobilidade social, antes afiançada pelo trabalho barato e desqualificado, tem diminuído a miscigenação e igualmente o comprometimento com o status quo excludente. Prova disso é que nos últimos dez anos muitos buscam na afirmação étnica -não importa se putativa ou real- o meio mais eficaz de fugir da pobreza extrema ou da situação de lumpemproletariado e de ter acesso à cidadania.
Eis o que explica o recente aumento da participação de negros e brancos em nossa população, em detrimento dos pardos, em uma cada vez mais intensa racialização das relações sociais entre nós. Tampouco surpreende que Lula tenha sido eleito presidente e de modo tão contundente. Pensando bem, nada expressa tão bem a crise brasileira.

Folha - Por que não surpreende?
Florentino -
A eleição de Lula teria sido impossível se o país estivesse bem, isto é, reproduzindo-se desigualmente, mas permitindo a mobilidade social conservadora. Logo, Lula não é signo da crise: ele é a crise.


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