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São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2003

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"O grau de segregação aqui é extremo"

DA REPORTAGEM LOCAL

Para o historiador Nicolau Sevcenko, da USP, a associação entre crescimento e alguma capacidade de inclusão -que foi real durante certo período do século 20- persiste na visão e nas expectativas que os brasileiros têm do próprio país, embora não corresponda mais à realidade.
O Brasil, ele diz, comentando os números do IBGE, acompanhou o movimento geral do século 20 de ganhos quantitativos em urbanização, industrialização, expectativa de vida, entre outros, sem no entanto ser capaz de realizar suficiente inclusão social, o que só piora depois que o crescimento econômico estancou.
Daí outra dissonância, dessa vez entre a frieza dos números que apontam melhoras e a sensação cotidiana de que o avanço não foi satisfatório.
Leia a seguir, trechos da entrevista. (RAFAEL CARIELLO)
 

Folha - O balanço do século é bom?
Sevcenko -
Posta dessa maneira, a pergunta pode distorcer qualquer resposta porque ficamos entre o sim ou não. Há indicadores gerais bons, como o aumento do tempo de vida das pessoas. Em grande parte isso tem a ver com o desenvolvimento de tecnologias como saneamento, medicina preventiva, farmacopéia. Os números do Brasil não significam o resultado de uma administração que levou em consideração esses aspectos. É talvez mais um dado do século que do Brasil.

Folha - Isso vale também para a maior participação das mulheres na vida pública e a expansão do ensino, por exemplo?
Sevcenko -
Tenderia a dizer que sim. O padrão da família mudou por toda parte do mundo, por várias razões, por condições da vida moderna, pela explosão dos meios de comunicação... Você pega países conservadores como Espanha, Polônia ou Irlanda e você vai ter mudanças similares -a família tendendo a se desagregar, mais e mais lares centrados na mulher. Talvez fique aí mascarado o fato de que antes o país tinha muito essa característica de lares centrados na mulher, mas isso não fosse visível.
Com relação ao quesito cor, esse é um problema particularmente delicado no país. O grau de preconceito e segregação aqui é tão extremo que as pessoas relutam em serem testadas com relação à sua origem étnica. Eu, você e o IBGE sabemos que a gente vive num país de esmagadora maioria de negros, mestiços e seus descendentes e no entanto em qualquer estatística que exista, desde que começaram a ser feitas até o ano 10.000, o país vai aparecer com maioria branca. Isso é terrível.

Folha - Na frieza dos números, a impressão é que de qualquer forma o país melhorou ao longo do último século. A sensação cotidiana parece distante disso. Por quê?
Sevcenko -
O problema não é tanto do quantitativo total, mas da questão redistributiva. O país cresceu, mas não redistribuiu, não só recursos econômicos, mas também oportunidades sociais.
Ao longo do século, com o processo de migração, essa gente levava consigo a expectativa de que teria uma oportunidade de compartilhar da multiplicação dos recursos e de ascensão social.
Até certo ponto isso foi realidade, principalmente nos anos do pós-guerra. Esse processo operou com alguma capacidade redistributiva. O que se passa é que o Brasil parou de crescer. Aí o país marca passo e não tem mais essa situação de crescimento com potencial distributivo.
A situação é tão recente que as pessoas que estão vivendo isso não têm muita clareza do que está acontecendo. Em grande parte ainda pensam como seus pais pensavam, que tudo é uma questão de batalhar no mercado, conseguir um bom emprego, dar uma boa educação ao filho, que terá uma situação melhor que a sua, e assim por diante. Isso é o que mudou. Isso dificilmente vai acontecer de novo.


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