São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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VOZ DO MORADOR

Dona de galeria fez a vida nos Jardins

Célia Dias, que faz ginástica assistindo ao trânsito na Lorena, relembra as memórias do local onde vive há 60 anos

Karime Xavier/Folha Imagem
Célia Dias, dona de galeria e moradora do Jardim Paulistano

WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Acontece toda manhã de sol. Enquanto faz exercícios na janela de seu apartamento no 11º andar de um prédio antigo na rua Dr. Melo Alves, no Jardim Paulista, Célia Maria Strasburg Gomes Dias, 79, observa o semáforo lá embaixo, na esquina da alameda Lorena. Calculando o quanto ele fica aberto pelo tempo das posições de ginástica, ela afirma, categórica, que a rua com menor fluxo tem sinal verde por mais tempo.
"O resultado é que a Lorena vive lotada", diz, as mãos espalmadas. "Já reclamei, mas não fizeram nada. Assim, vou fazendo a minha ginástica e vendo esse absurdo." Se ela insiste na vigília é por crer que "o problema do bairro é o trânsito" -ela e 27% dos moradores da região entre as avenidas Paulista, Rebouças, Brigadeiro Luís Antônio e rua Estados Unidos, que formam o Jardim Paulista.
É lá que ela tem dirigido nos últimos 60 anos, "e graças a Deus muito bem, bastante e sem óculos", desde o tempo em que as ruas eram de paralelepípedo e ela estacionava o carro na porta de casa -a terceira de uma vila na esquina da rua da Consolação com a Oscar Freire.
A pé, sacola em punho, ela ia comprar carne no açougue, e arroz e feijão no empório (que mais tarde seria, conta, o célebre bar Supremo, que atraía a nata dos Jardins e onde Célia ia com o marido "almoçar, jantar e até tomar um aperitivo". Na volta, deixava a trouxinha de roupa para a lavadeira, que morava na Oscar Freire. "E nesse trecho hoje tão caro, pense bem."
"Eu ia fazer compras com 200 réis", lembra uma Célia saudosa dos tempos em que se tornou sócia do Clube Paulistano -diz ela que teve aula de cooper com o próprio Cooper, quando esteve em São Paulo. Desde então já morou em muitos lugares dos Jardins. E não pensa em sair da Melo Alves.
"Quem vive nos Jardins não sai mais", diz Célia, concordando com 67% dos moradores do Jardim Paulista que acham seu bairro muito melhor que qualquer outro na cidade (a média dos paulistanos é de 25%). "Esse miolinho dos Jardins é muito gostoso. E como sempre estive desse lado, eu me afeiçoei."

"Nem ouço mais"
De pulôver preto, lenço verde estampado amarrado no pescoço, óculos e calças verdes de veludo cotelê, Célia sobe e desce as escadas da galeria, decidindo uma compra de artesanato aqui ("não, esse não; esse sim, é bonito"); a mudança de um objeto de lugar ali ("falta uma igreja da Nossa Senhora do Brasil aqui nesse armário, é bom repor"); e com tempo ainda para receber velhas amigas da vizinhança.
"Todo dia entra um aqui para conhecer", diz Célia, enquanto abre um armário de madeira e retira um dos oito livros de visitas que guardou nos últimos 30 anos. Passa os olhos e vê, entre as assinaturas, a do "bom cliente", o empresário Petrôneo Correia. "Esse vinha muito."
Hoje sua galeria de artesanato "não é mais a única do bairro", muitas pessoas copiaram suas exposições naif, e ela cedeu a direção do lugar aos filhos ("sou só uma grande palpiteira"). Mas aquelas paredes amarelas por fora e brancas recém-pintadas por dentro -cobertas de quadros, vasos, bonecos e objetos dos quatro cantos do país-, guardam sua história.
O segundo andar da galeria, hoje com mesas e moringas, era seu quarto, que "chacoalhava com os caminhões que passavam na Rebouças". Hoje Célia olha do janelão de vidro do antigo terraço do casarão, que agora abriga a grande vitrine de vidro da loja, e não se espanta com o som do trânsito. "Barulho? Qual? Nem ouço mais." Só reclama (olhando pela janela) dos cães e seus donos, "que nem sempre juntam a sujeira".
Mas a Galeria Arte Brasileira "vai bem, obrigado", desde 1978, quando foi aberta. O know-how quem tinha era o marido, que por anos trabalhou na loja de arte popular do pai. E ela, o tino comercial herdado da mãe -quando o pai falira, foi sua loja de chapéus "para as grandes famílias paulistanas como Crespi e Matarazzo" que garantiu toda a sua criação.
Foi na Bela Vista que nasceu e cresceu, até mudar para os Jardins. E é nesse pequeno quadrilátero de ruas, hoje tomado por lojas de grifes e gente bem vestida passeando com cães ainda mais vistosos, que Célia quer continuar vivendo. Aqui está sua loja, aqui vive sua família -e é aqui que sobrevive a memória gostosa dos tempos em que se comprava arroz no empório da Oscar Freire.




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