Surfista de Gaza
Em meio a sirenes de bombardeios, amantes do surfe usam o mar Mediterrâneo como território de paz
Ao longo da história, o mar adquiriu diferentes significados para os homens. Em seu livro "O Território do Vazio", o historiador francês Alain Corbin apresenta exemplos: o mar como lugar de monstros imaginários; como experiência terapêutica e médica, para limpar o corpo dos homens; como espaço lúdico.
Na cidade palestina de Gaza, um grupo de surfistas dá um significado particular para o mar: liberdade.
Pele bronzeada, olhos claros, cabelos penteados para trás com gel, óculos Ray Ban: Mahmoud Alryashi, 25, conhecido como "Moody" (apelido que ele escolheu por ser "curto e fácil"), parece uma estrela de cinema.
Ele é a figura mais popular da primeira geração de surfistas de Gaza, iniciada no começo do século 21 e composta por cerca de 30 moradores daquela região da Palestina.
Diferentemente do Brasil, que vive o auge de seu surfe competitivo, Gaza ainda engatinha na prática amadora.
Como muitos dos seus amigos, Moody tem uma profissão ligada à água. Ele foi salva-vidas e hoje é instrutor de natação, além de trabalhar no comércio com seu pai.
Ele conta que, devido ao bloqueio imposto pelos governos de Israel e Egito à faixa de Gaza, que impede a livre circulação de pessoas e produtos na região, o mar Mediterrâneo é o único espaço que eles encontram para exercer a liberdade, o surfe. E mesmo assim com dificuldades.
"Quando há navios de guerra israelenses, não podemos surfar. Mas eu me sinto realmente feliz quando surfo. Meu sonho na vida é surfar ondas altas e participar de competições", conta Moody.
Outro surfista local, o salva-vidas Ahmed Abu Hassira, 35, compartilha as impressões e angústias do conterrâneo.
"A vida em Gaza é difícil, difícil. Nossa única saída é o mar. Surfar é minha vida; eu me sinto livre quando estou no mar", diz Ahmed.
O surfe na região ganhou seu principal impulso com pranchas usadas que os palestinos ganharam em 2007 do Surfing 4 Peace e do Gaza Surf Relief, dois projetos dedicados a negociar com os governos locais e levar equipamentos aos surfistas de Gaza.
O idealizador do Surfing 4 Peace, Dorian "Doc" Paskowitz, conhecido como "pai do surfe judeu" por seu trabalho de divulgação do esporte na região, é um dos heróis dos surfistas de Gaza, por ter sido o principal articulador da entrega de equipamentos em 2007.
Além dele, o norte-americano Kelly Slater, 11 vezes campeão do circuito mundial, também é um ídolo por lá.
"Slater nos mandou presentes e equipamentos nos últimos anos. Em retribuição, eu mandei um 'souvenir' para ele, um troféu feito com as minhas mãos. Ele me mandou uma foto com o presente, o que me dá muito orgulho", conta Ahmed sobre a lenda do surfe competitivo, que apoia projetos de ajuda aos praticantes do esporte em Gaza.
"Tenho muitos heróis, mas amo Kelly Slater", acrescenta Moody.
As pranchas doadas em 2007 são utilizadas por eles até hoje. Por isso, eles sofrem com a deterioração das peças.
"Não existem pranchas novas em Gaza, porque é proibido entrar com elas por aeroportos e fronteiras. Eu tenho passado por muitos problemas para consertar as pranchas que temos", explica Moody.
Homens nas idades de Moody e Ahmed não podem sair de Gaza sem licenças especiais, que são difíceis de obter na região.
Isso impede que eles consigam empregos fora da região, como gostaria Moody, e também os afasta da realização de seus desejos no surfe, como pegar ondas em Marrocos ou no Havaí, nos EUA, como sonha Ahmed.
Em seu perfil no Facebook, Moody mostra as modernidades da vida em Gaza: surfe, roupas descoladas, bebidas energéticas, festas, postagens sobre os jogos do Barcelona.
Sob essa capa mais contemporânea, ele e os demais moradores de Gaza vivem com limitações primárias, como sirenes de bombardeio, toque de recolher, cortes de eletricidade e troca de mísseis aéreos entre Israel e a facção palestina Hamas.
As fotos de Facebook do grupo de surfistas pegando as ondas baixas do mar amarronzado de Gaza com a bandeira da Palestina em mãos dividem espaço com imagens de guerra, como vestimentas militares e vítimas ensanguentadas vítimas dos bombardeios.
Para falar sobre os conflitos na região, cujas origens remontam ao fim do século 19, eles usam poucas palavras e mostram desconforto ao tratar do assunto.
"A solução é a paz. Mas não sei de que modo podemos alcançá-la", explica laconicamente Moody.