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José Roberto Torero

Última vontade

O melhor é jogar minhas cinzas na Vila Belmiro, um pouco em cada uma das grandes áreas

Não enterrem meu corpo em qualquer lugar, muito menos num cemitério, que não quero ouvir o choro da viúva nem as gargalhadas do sócio minoritário. Na verdade, nem me enterrem, que não desejo alimentar vermes, minhocas e outros tais, que entre arrotos dirão: "Este estava no ponto. Nada como uma gordurinha a mais".

Prefiro ser cremado em fogo brando, tendo meu cheiro de churrasco espalhado pelos alísios, de modo que meus familiares, lambendo os beiços, saiam da triste cerimônia direto para um rodízio.

Mas deem um bom final às minhas cinzas. Nada de mar, que sofro de enjoo, nem me atirem do alto de um penhasco, pois sempre odiei qualquer tipo de voo. Muito menos me deixem dentro de uma caixinha, com meu nome gravado em letras douradas. Pois tenho certeza que Marilene, minha diarista desastrada, vai me deixar cair um dia, espalhando-me de maneira inglória, e acabarei no estômago de um aspirador, junto a poeiras sem estirpe e restos de chicória.

Não, nada disso. O melhor é jogar minhas cinzas na Vila Belmiro. Bem espalhadas, um pouco em cada uma das grandes áreas. Quando ventar, darei volteios pelo ar. Quando chover, me entranharei na terra. E de tempo em tempo me reunirei em montinhos. Aí, quando a bola bater em mim e enganar o goleiro adversário, a torcida vai dizer: "Eis mais um gol do Torero. Quando vivo, perna de pau, mas morto, é um Romário!"

Polivalente, também atuarei como zagueiro, desviando as bolas rasteiras que iriam morrer no cantinho, atrapalhando o chute mortal do artilheiro. Então darei alívio aos torcedores e me terão ódio os narradores, que dirão: "Que sacripanta, me deixou com o grito de gol no meio da garganta".

Mas, se mais azar que sorte eu tiver, e se um dia enganar meu próprio arqueiro, os amigos vão dizer, em tom de escarninho, "Até morto continua fazendo gol contra, tadinho".

MILLÔR

O texto acima é um óbvio, e péssimo, plágio do poema "Última Vontade", de Millôr Fernandes, que está no livro "Papáverum Millôr". Quando tinha uns 14 anos, descobri na prateleira de uma livraria uma coisa chamada "O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr". Desde então fiquei fã do sujeito. Tanto que, no dia da prova de redação do meu primeiro vestibular, fui lendo "Papáverum Millôr" para ter boas ideias. O tempo passou e tive a sorte de almoçar com ele. Mas fiquei tão intimidado que não consegui falar nada. E, com raiva de mim mesmo, saí antes da sobremesa. Pena, pena...

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