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Rede de proteção

Enquanto EUA se mobilizam contra abuso sexual no meio esportivo, Brasil ainda ignora o tema

MARIANA LAJOLO
EDITORA-ASSISTENTE DE "ESPORTE"

Kayla Harrison é a esperança da maior potência esportiva do mundo de conquistar um feito inédito: uma medalha de ouro olímpica no judô.

Ostenta no currículo um título mundial, o primeiro de uma judoca dos Estados Unidos nos últimos 26 anos.

Feito suficiente para tornar a jovem de 21 anos uma das mais requisitadas da equipe que vai à próxima Olimpíada. Mas, às vésperas de sua estreia nos Jogos de Londres, o sucesso de Kayla nos tatames não é mais o principal foco de atenção.

Desde que decidiu quebrar um doloroso silêncio de anos, a atleta se tornou símbolo de uma luta contra um mal cada vez mais exposto nos EUA: o abuso sexual no esporte.

"É algo que aconteceu comigo. Tenho de lidar com isso. Resolvi falar para tentar ajudar outras pessoas.

Quero poder mudar a vida delas", declarou Kayla.

Casos como o da judoca têm chacoalhado o país e gerado iniciativas de prevenção e combate aos abusos.

Kayla foi molestada sexualmente por seu ex-técnico, com quem treinava desde os oito anos. Começou quando ela tinha 13 e, apenas aos 17, a judoca assistiu ao agressor confessar e ser condenado a dez anos de prisão.

A atleta pouco falou sobre seu passado até novembro, quando explodiu o caso da Universidade Penn State.

O auxiliar técnico do time de futebol americano havia abusado de pelo menos oito garotos durante os 15 anos em que trabalhou na instituição. Era a terceira universidade americana envolvida em um escândalo sobre o tema.

Kayla decidiu, então, ajudar a dar voz às vítimas.

Em 2010, a federação de natação dos EUA também viu atletas exporem seus dramas e foi processada sob suspeita de acobertar casos de abuso. Terminou obrigada a revisar seu código de conduta e banir pelo menos 46 técnicos.

Neste ano, o Comitê Olímpico dos EUA lançou o Safe Sport (www.safesport.org), um programa de orientação e prevenção para federações, times, atletas e treinadores.

Outras federações esportivas, ONGs e entidades governamentais também têm feito ações sobre o tema.

Uma movimentação que não se percebe no Brasil.

"Esse assunto parece ainda ser tabu aqui. Explode um caso aqui, outro ali. Mas a tendência é varrer para baixo do tapete. Porque parece que, se tirar o tapete, sairá muita sujeira", diz o psicólogo João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista de Psicologia do Esporte.

O Comitê Olímpico Brasileiro não tem nenhum tipo de programa ou ação relativos ao abuso de jovens atletas.

A Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, que viu uma nadadora revelar ter sido molestada, também não.

Em 2008, Joanna Maranhão declarou ter sido vítima de um ex-treinador. A atleta, entretanto, não pôde processar seu agressor porque o caso já havia prescrito.

Neste ano, foi aprovada lei que aumenta o tempo de prescrição desses crimes.

Joanna está sendo processada por dano moral e calúnia pelo ex-técnico. As sentenças ainda não saíram.

"Constatamos que precisamos tomar medidas, mas elas não são tomadas. Os clubes não se abrem para os movimentos sociais, e o governo precisa ser mais proativo", diz Iolete Ribeiro da Silva, secretária-adjunta do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

MAIS DENÚNCIAS

No Brasil, de janeiro a abril, chegaram à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos 7.651 denúncias de abuso sexual de menores. Bahia (12,54%), São Paulo (11,11%) e Rio (9,78%) lideram a lista entre os Estados. Foram recebidas ligações de 1.585 municípios para o Disque 100.

O governo não tem dados específicos sobre o esporte.

Controle e prevenção ficam a cargo dos clubes. No futebol, as ações ainda acontecem de forma isolada.

O Estatuto Nacional da Criança e do Adolescente pede que os times tenham psicólogos nas equipes de base.

"Mas não tem funcionado bem. Infelizmente, muitos se preocupam só em não tomar uma multa, mas não têm projeto e só contratam o profissional para bater o ponto", declara Cozac.

No Minas Tênis, que tem equipes de diversas modalidades, a conduta dos técnicos passou a ser ainda mais discutida nesta temporada.

O clube contratou Scott Volkers para a natação. Treinador da Austrália em três Olimpíadas (1992, 1996 e 2000), ele já foi investigado por abuso sexual. Nada foi provado contra o técnico.

Surgiram manifestações nas redes sociais de pessoas descontentes com a escolha do australiano para o cargo.

O clube tem códigos de conduta para atletas e funcionários, além de psicológicos acompanhando as equipes.

"Fizemos ampla pesquisa e entrevistas [sobre Volkers]. O clube tem uma obrigação maior, porque lida com outras pessoas. Mas ninguém pode ser punido por algo não concretizado", diz Carlos Antônio da Rocha Azevedo, diretor-adjunto de natação.

"O clube fez uma reunião com os pais. Não foi unânime, mas o clube explicou tudo, e eles nos deram um voto de confiança. Os atletas têm confiança nele", diz.

Malia Arrington, do Safe Sport, diz que as denúncias cresceram desde que projetos como o que ela comanda foram lançados nos EUA.

"As pessoas sabem a quem recorrer. [O aumento] é um bom indicador de que seu programa está funcionando."

Kayla, a judoca americana, sofreu até encontrar apoio. Antes de decidir lutar contra seu agressor, pensou em suicídio e tentou fugir de casa.

"Não tem sido fácil, mas eu não mudaria nada. Sou uma mulher mais forte agora. Percebi que eu somente serei vítima se me deixar ser vítima", declarou a atleta.

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