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Antonio Prata

antonioprata.folha@uol.com.br

Sai fora

Bastam três dias para decifrar um país e penetrar a alma de seu povo. Mais do que isso é não só desnecessário como desaconselhável: corre-se o sério risco de topar com situações e cenários que não se encaixam na meia dúzia de clichês que você viajou disposto a confirmar e descobrir que nem todo jamaicano é um maconheiro gente-fina, nem todo italiano é o Roberto Benigni, nem todo inglês é um humorista capaz de atravessar qualquer perrengue com sua fina ironia -conforme afirmei anteontem, neste mesmo espaço. Como dizem por aqui: "Sorry, mate!".

Nas primeiras 72 horas londrinas, fui muito bem tratado por todos, dos simpaticíssimos voluntários oficiais -70 mil, onipresentes, com seus uniformes rosa e roxo que podem ser vistos até da França, num dia nublado- aos cidadãos comuns, que importunei com meu mapinha amassado e meu inglês claudicante.

Na 73ª hora, contudo, a hora em que recebemos a figurinha que não cabe no álbum, cometi o feliz equívoco de abordar um adolescente: um garoto negro, de uniforme Adidas e fones de ouvido.

Foi ele ouvir o meu "excuse me" para soltar um berro, um urro cheio de ódio, talvez guardado havia muito, reservado precisamente para aquele momento: o momento em que fosse enfim chamado a participar da grande comunhão universal -da qual não comunga- chamada Olimpíada.

"Move away!", ele gritou, com sangue nos olhos -e eu, que prezo a privacidade alheia e os meus próprios dentes, achei de bom tom obedecer.

Posso estar me enganando mais uma vez. Vai ver o garoto é um rico estudante de Oxford e só estivesse mal-humorado depois de levar um pé na bunda da namorada.

Mas, quando a gente se lembra dos prédios pegando fogo, um ano atrás, e lê o primeiro ministro David Cameron, no programa oficial dos Jogos, dizendo esperar que o evento possa "inspirar uma geração", "pessoas de todas as origens", e que "jovens que nunca pensaram em colaborar com suas comunidades locais" aprendam "valores de respeito, excelência e amizade", é de se suspeitar que o "sai fora!" na minha orelha signifique que, por mais que o "Espírito Olímpico" ecoe pelas teletelas de Eurásia, Lestásia e Oceania há vários meses, o velho "No future!" dos Sex Pistols ainda tenha a sua ressonância. Talvez hoje mais do que nunca.

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