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Testemunha tatuada

Confissão informal de ciclista em relação a doping deu origem à investigação contra Armstrong

IAN LOVETT
DO “NEW YORK TIMES”, EM UPLAND

A longa estrada que conduziu à queda de Lance Armstrong começou em Upland, muito longe dos Alpes franceses onde ele chegou ao pináculo do ciclismo, em um ateliê de tatuagem em uma zona a leste de Los Angeles.

Coberto de tinta das pernas ao pescoço, Kayle Leogrande, o proprietário do ateliê, foi ciclista profissional por dois anos. Só se encontrou com Armstrong uma vez, em uma corrida, em 2005.

Mas quer Armstrong se lembre do cara tatuado, quer não, os destinos dos dois terminariam entrelaçados.

Há quatro anos, a Agência Antidoping dos EUA suspendeu Leogrande, 35, pelo uso de EPO. O caso deu origem à prolongada investigação que baniu Armstrong do ciclismo.

Poucos anos atrás, a conexão parecia impossível. Em 2004, quando Armstrong estava conquistando a sexta de suas sete vitórias seguidas na Volta da França, Leogrande não pedalava há anos.

Ciclista na adolescência, ele desistiu das competições aos 17 anos, se casou, teve filhos, se divorciou e trabalhou em ateliês de tatuagem.

Após assistir à vitória de Armstrong na Volta da França de 2004, Leogrande voltou a pedalar. Mas o ciclismo havia mudado drasticamente. Outros ciclistas começaram a falar com ele sobre doping.

Leogrande diz que comprou EPO pela primeira vez em 2006, de Joe Papp, um ex-ciclista que se admitiu culpado, posteriormente, de distribuição de medicamentos.

Sem um médico para consultar, Leogrande não sabia a dosagem e quando fazê-lo. Em 2007, ele assinou com a equipe Rock Racing, onde conheceu ex-colegas de equipe de Armstrong. Também começou a usar doping com mais regularidade.

Leogrande diz que a sensação era a de uma criança que cabula aulas. Após os treinos, ele contemplava atentamente os carros diante de sua casa, preocupado com a possibilidade de que as autoridades antidoping estivessem esperando por ele.

Seus resultados melhoraram. Após deixar sua equipe, venceu o Nacional amador em 2006 e depois ficou entre os dez primeiros na divisão profissional de 2007. Disputar a Volta da França parecia uma possibilidade.

Mas, em julho, ele teve de passar pelo antidoping. Preocupado, confidenciou a Suzanne Sonye, uma das assistentes da equipe, que usava doping. "Lembro de ter pensado que ela aceitou bem a revelação porque todos faziam o mesmo. Fui ingênuo."

A confissão casual, e não o doping, abriu a caixa de Pandora, serviu como fio da meada e levou os investigadores a outros ciclistas.

O teste dele não acusou irregularidade. Mas Sonye reportou sua confissão à agência antidoping. O depoimento dela e provas oferecidas por Papp -fotos de Leogrande com EPO e um bilhete manuscrito- o condenaram.

No final de 2008, a agência antidoping o suspendeu por dois anos com provas "não analíticas", e não por irregularidades no antidoping.

Ele deixou a casa alugada em que vivia, e uma caixa de EPO no refrigerador. A senhoria de Leogrande telefonou para perguntar o que fazer com "a caixa de drogas".

Deprimido, e com seu segundo casamento acabando, ele respondeu que tanto fazia -mesmo após ela ameaçar chamar as autoridades. "Faça o que achar melhor."

Ela ligou para a FDA (agência federal que regulamenta e fiscaliza alimentos e remédios). Semanas depois, Jeff Novitzky, um investigador da FDA que já havia provado o uso de anabolizantes por atletas conhecidos, entre os quais Marion Jones e Barry Bonds, apareceu em sua nova casa.

Leogrande diz ter contado a Novitzky tudo o que sabia sobre o doping no ciclismo, sem citar nomes. Novitzky havia acabado de iniciar sua investigação no ciclismo e já perguntava sobre Armstrong.

"Ele perguntou se eu achava que Lance usava doping. Respondi que ele disputava aquelas provas ferozes na Europa. Um ciclista daquele nível deveria fazer o quê?"

No segundo trimestre de 2010, Floyd Landis, um dos antigos colegas de equipe de Armstrong, revelou seu uso de doping, dizendo que ele e outros ciclistas, entre os quais Armstrong, haviam se dopado na US Postal. Landis também disse ter informações de que Michael Ball, proprietário da Rock Racing, estava envolvido com doping.

As autoridades sugeriram que Landis procurasse Novitzky para informá-lo sobre Ball, porque haveria uma investigação criminal sobre a Rock Racing e a US Postal.

Após estabelecida a conexão entre Landis e Novitzky, agentes federais começaram a procurar outros ex-colegas de equipe de Armstrong.

O caso contra Armstrong avançava lentamente, e Leogrande também tinha problemas judiciais a enfrentar.

Ainda na Rock Racing, ele abriu processo contra a agência antidoping e processou Sonye por difamação. Quando o processo acabou, ele precisou pagar as custas.

Leogrande cumpriu a suspensão e se concentrou nas tatuagens. No ano passado, após admitir uso de doping, recomeçou a correr em uma equipe criada por ele.

Leogrande sabe que jamais disputará um Tour de France. Mas agora vê a suspensão como uma bênção que permitiu que ele redefinisse suas perspectivas e passasse mais tempo com os filhos. "Sabia que estava errado, o tempo todo, e tenho certeza de que Lance também sabia."

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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