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"Povão" e metas ocultam a São Paulo da São Silvestre
Rivais, cronômetro e ânsia de ir até o fim fazem atleta esquecer entorno da prova
Percorridos em dia comum, os 15 km da badalada corrida revelam o medo e a beleza da cidade, seja nas pessoas,
seja em arquitetura e adorno
RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA
No meio da multidão, só se vê
gente. Pedaços de gente, tão
perto um está do outro. Cabelos, cabeças, nucas, costas, braços, pernas, cotovelos, joelhos,
coxas. O cheiro de suor se mistura com o fedor de urina que
sobe do asfalto. O corredor olha
de novo o relógio, sentidos todos à espera do sinal de largada.
Enfim, soa a corneta, 20 mil
corpos entram em ação, batendo os pés na av. Paulista, começando mais uma São Silvestre.
É tanta a vontade de correr a
mais famosa prova de rua do
Brasil que poucos se dão ao luxo de olhar para os lados e embeber os olhos nas cenas que
formam o ambiente por onde
passam. Eu também fiz isso ontem, mais uma vez, correndo na
Paulista, perdido na luta para
melhorar o tempo, vencer o calor, superar dificuldades.
Mas, há cerca de 15 dias, tratei de conhecer não o trajeto,
que já percorri tantas vezes,
mas as calçadas, prédios, sarjetas e pessoas que enchem os 15
km da Corrida Internacional de
São Silvestre. Com uma câmera
digital, registrei, quilômetro a
quilômetro, imagens que talvez
os corredores pudessem ver se
os olhos não estivessem pregados na nuca do adversário, colados nos dígitos do relógio, fixos
no asfalto como parte de uma
máquina em movimento, exigindo sempre mais de si.
Da largada, poucos conseguem divisar a grandiosidade
do prédio do Masp. Menos ainda se dão conta da estátua que
homenageia o bandeirante
Bartolomeu Bueno da Silva, o
Anhanguera, instalada do outro lado da avenida, diante do
parque Trianon. Quando fiz o
percurso, ela ainda estava engalanada por um colete salva-
vidas laranja, parte de projeto
do artista plástico Eduardo
Srur, que assim "protegeu" outras tantas estátuas da cidade.
Seguindo pela Paulista, cartão-postal da riqueza do Estado, os corredores dão adeusinho para as câmeras e ouvem
ruídos de espectadores que se
acotovelam nas calçadas. Mas
nem notam outra multidão, por
trás dos torcedores: vendedor,
morador de rua, guarda, gari...
O olhar se esbugalha, porém,
com a visão da esquina com a
Consolação: é ali que vai começar a corrida; até então, foi teste, trote, aquecimento, busca
de espaço. Agora já há asfalto
para o atleta queimar o chão.
Por isso, é difícil que alguém erga os olhos e perceba o caprichoso alinhamento de árvore
de Natal ecológica, prédios e
antena que se divisa pouca antes de dobrar a esquina.
Descemos com tudo, os mais
afoitos. Já os mais calejados sabem que é melhor poupar forças para mais tarde. Uns e outros, porém, mal divisam o prédio dos bombeiros e nem se dão
conta dos degraus na entrada
do cemitério da Consolação,
muitas vezes usado como poltrona por moradores de rua.
A igreja da Consolação saúda
os atletas, pouco antes de dobrar para a Ipiranga, passando
quase sem ver as desgraciosas
instalações do bar que ocupa o
espaço do Redondo, ponto de
encontro de foliões. Os corredores nem notam a boate Love
Story, que recebe noctívagos e
mantém a festa até a manhã alta, como no domingo em que
fotografei o percurso ontem retraçado por milhares de pés. A
praça da República esconde segredos que, a depender do não-olhar veloz dos corredores,
continuarão protegidos. O lago
de águas sujas ganha brilho especial quando recebe o sol, e a
estátua de Mercúrio, o mensageiro dos deuses, abençoa os
atletas. Impossível não notar a
gloriosa esquina da Ipiranga
com a São João, uma boa hora
para reavaliar o corpo, pensar
sobre o que já foi e calcular o
que vem pela frente. Logo se
chega à alça de aceso ao elevado, primeira subidinha do percurso, para ganhar o Minhocão,
o elevado Costa e Silva.
Os mais cansados já não tiram o olhar do chão; os inteiraços também fecham o olhar para o mundo, preocupados em
correr melhor. Perdem a chance de bisbilhotar os apartamentos que o Minhocão invade; pelo menos, espionar uma varanda, uma cozinha, um jardinzinho, isso o fotógrafo-corredor
não deixa de fazer.
Do elevado também se veem
as árvores da av. Pacaembu. E
basta, pois chegamos ao km 6 e
partimos para uma série de voltinhas por ruelas estreitas e
curtas, feiosas, onde não há nada para olhar, a não ser o retrato do medo na cidade: o muro
alto encimado por arame farpado, tal qual em presídio. E o aviso: a cerca está eletrificada, o
choque pode ser mortal.
O corredor sobe o viaduto
Antártica, metade da prova já
foi; pode pedir forças aos trens
que circulam por baixo.
Difícil, pois vai começar o
pior trecho da São Silvestre,
chato, quente e dolorido. É uma
grande reta, do km 8 ao km 11,
com o viaduto Rudge para exigir das panturrilhas e o sol para
enfraquecer o espírito. Ali é
preciso se concentrar, reunir as
forças que sobram, guardá-las
em um canto para o final.
E assim o atleta deixa de ver
curiosidades como os trabalhos
de um artesão, na rua Norma
Giannotti, que transforma restos de garrafas de plásticos, peças de carros e outros badulaques em animais, flores... Também poucos veem outro ícone
do país: restos do Carnaval. Tão
festejado na folia, até boneco
adorna terreno largado ao léu.
Os atletas cruzam de novo a
av. Ipiranga, embicam para o
largo do Paissandu, no quilômetro mais gostoso da prova,
em que o povo que habita os bares os homenageia, brinca, diverte e se diverte. Passamos pelo Teatro Municipal, cruzamos
o viaduto do Chá, completamos
o km 12, subindo a Líbero Badaró e iniciando o terço final, o
mais difícil e empolgante.
Para não perder o ímpeto, há
o beijo gostoso que a estátua
imita, em pleno largo São Francisco. É ali que há alguns metros de descanso, após a subida
curta e ofegante. Dá para ver a
descida leve que leva até o início da av. Brigadeiro, a montanha que será escalada na busca
de desfrutar a festa final...
Subindo a avenida, os olhos
se fixam no viaduto da 13 de
Maio, que anuncia o último
quilômetro. Há uma subidinha,
mas o atleta já vê o monumental prédio Nações Unidas, marca da esquina da Brigadeiro
com a Paulista. Antes, os religiosos fazem o sinal-da-cruz ao
passar pela igreja da Imaculada
Conceição, onde aos domingos
floristas vendem rosas, cravos...
E não há mais nada, não tem
para ninguém: o atleta ganha a
Paulista, corre sem ver a imensa escultura urbana de concreto, plástico e aço. Cruza a linha.
Vai começar mais um ano. Até a
próxima São Silvestre.
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