São Paulo, quinta-feira, 01 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Povão" e metas ocultam a São Paulo da São Silvestre

Rivais, cronômetro e ânsia de ir até o fim fazem atleta esquecer entorno da prova

Percorridos em dia comum, os 15 km da badalada corrida revelam o medo e a beleza da cidade, seja nas pessoas, seja em arquitetura e adorno


RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA

No meio da multidão, só se vê gente. Pedaços de gente, tão perto um está do outro. Cabelos, cabeças, nucas, costas, braços, pernas, cotovelos, joelhos, coxas. O cheiro de suor se mistura com o fedor de urina que sobe do asfalto. O corredor olha de novo o relógio, sentidos todos à espera do sinal de largada.
Enfim, soa a corneta, 20 mil corpos entram em ação, batendo os pés na av. Paulista, começando mais uma São Silvestre.
É tanta a vontade de correr a mais famosa prova de rua do Brasil que poucos se dão ao luxo de olhar para os lados e embeber os olhos nas cenas que formam o ambiente por onde passam. Eu também fiz isso ontem, mais uma vez, correndo na Paulista, perdido na luta para melhorar o tempo, vencer o calor, superar dificuldades.
Mas, há cerca de 15 dias, tratei de conhecer não o trajeto, que já percorri tantas vezes, mas as calçadas, prédios, sarjetas e pessoas que enchem os 15 km da Corrida Internacional de São Silvestre. Com uma câmera digital, registrei, quilômetro a quilômetro, imagens que talvez os corredores pudessem ver se os olhos não estivessem pregados na nuca do adversário, colados nos dígitos do relógio, fixos no asfalto como parte de uma máquina em movimento, exigindo sempre mais de si.
Da largada, poucos conseguem divisar a grandiosidade do prédio do Masp. Menos ainda se dão conta da estátua que homenageia o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, instalada do outro lado da avenida, diante do parque Trianon. Quando fiz o percurso, ela ainda estava engalanada por um colete salva- vidas laranja, parte de projeto do artista plástico Eduardo Srur, que assim "protegeu" outras tantas estátuas da cidade.
Seguindo pela Paulista, cartão-postal da riqueza do Estado, os corredores dão adeusinho para as câmeras e ouvem ruídos de espectadores que se acotovelam nas calçadas. Mas nem notam outra multidão, por trás dos torcedores: vendedor, morador de rua, guarda, gari...
O olhar se esbugalha, porém, com a visão da esquina com a Consolação: é ali que vai começar a corrida; até então, foi teste, trote, aquecimento, busca de espaço. Agora já há asfalto para o atleta queimar o chão. Por isso, é difícil que alguém erga os olhos e perceba o caprichoso alinhamento de árvore de Natal ecológica, prédios e antena que se divisa pouca antes de dobrar a esquina.
Descemos com tudo, os mais afoitos. Já os mais calejados sabem que é melhor poupar forças para mais tarde. Uns e outros, porém, mal divisam o prédio dos bombeiros e nem se dão conta dos degraus na entrada do cemitério da Consolação, muitas vezes usado como poltrona por moradores de rua.
A igreja da Consolação saúda os atletas, pouco antes de dobrar para a Ipiranga, passando quase sem ver as desgraciosas instalações do bar que ocupa o espaço do Redondo, ponto de encontro de foliões. Os corredores nem notam a boate Love Story, que recebe noctívagos e mantém a festa até a manhã alta, como no domingo em que fotografei o percurso ontem retraçado por milhares de pés. A praça da República esconde segredos que, a depender do não-olhar veloz dos corredores, continuarão protegidos. O lago de águas sujas ganha brilho especial quando recebe o sol, e a estátua de Mercúrio, o mensageiro dos deuses, abençoa os atletas. Impossível não notar a gloriosa esquina da Ipiranga com a São João, uma boa hora para reavaliar o corpo, pensar sobre o que já foi e calcular o que vem pela frente. Logo se chega à alça de aceso ao elevado, primeira subidinha do percurso, para ganhar o Minhocão, o elevado Costa e Silva.
Os mais cansados já não tiram o olhar do chão; os inteiraços também fecham o olhar para o mundo, preocupados em correr melhor. Perdem a chance de bisbilhotar os apartamentos que o Minhocão invade; pelo menos, espionar uma varanda, uma cozinha, um jardinzinho, isso o fotógrafo-corredor não deixa de fazer.
Do elevado também se veem as árvores da av. Pacaembu. E basta, pois chegamos ao km 6 e partimos para uma série de voltinhas por ruelas estreitas e curtas, feiosas, onde não há nada para olhar, a não ser o retrato do medo na cidade: o muro alto encimado por arame farpado, tal qual em presídio. E o aviso: a cerca está eletrificada, o choque pode ser mortal.
O corredor sobe o viaduto Antártica, metade da prova já foi; pode pedir forças aos trens que circulam por baixo.
Difícil, pois vai começar o pior trecho da São Silvestre, chato, quente e dolorido. É uma grande reta, do km 8 ao km 11, com o viaduto Rudge para exigir das panturrilhas e o sol para enfraquecer o espírito. Ali é preciso se concentrar, reunir as forças que sobram, guardá-las em um canto para o final.
E assim o atleta deixa de ver curiosidades como os trabalhos de um artesão, na rua Norma Giannotti, que transforma restos de garrafas de plásticos, peças de carros e outros badulaques em animais, flores... Também poucos veem outro ícone do país: restos do Carnaval. Tão festejado na folia, até boneco adorna terreno largado ao léu.
Os atletas cruzam de novo a av. Ipiranga, embicam para o largo do Paissandu, no quilômetro mais gostoso da prova, em que o povo que habita os bares os homenageia, brinca, diverte e se diverte. Passamos pelo Teatro Municipal, cruzamos o viaduto do Chá, completamos o km 12, subindo a Líbero Badaró e iniciando o terço final, o mais difícil e empolgante.
Para não perder o ímpeto, há o beijo gostoso que a estátua imita, em pleno largo São Francisco. É ali que há alguns metros de descanso, após a subida curta e ofegante. Dá para ver a descida leve que leva até o início da av. Brigadeiro, a montanha que será escalada na busca de desfrutar a festa final...
Subindo a avenida, os olhos se fixam no viaduto da 13 de Maio, que anuncia o último quilômetro. Há uma subidinha, mas o atleta já vê o monumental prédio Nações Unidas, marca da esquina da Brigadeiro com a Paulista. Antes, os religiosos fazem o sinal-da-cruz ao passar pela igreja da Imaculada Conceição, onde aos domingos floristas vendem rosas, cravos... E não há mais nada, não tem para ninguém: o atleta ganha a Paulista, corre sem ver a imensa escultura urbana de concreto, plástico e aço. Cruza a linha. Vai começar mais um ano. Até a próxima São Silvestre.


Texto Anterior: Mulher honra o Brasil na São Silvestre
Próximo Texto: Em 102º lugar, Vanderlei se supera na despedida
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.