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FUTEBOL
O dia em que o Telê ficou cismado
MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA
A primeira semana de dezembro chegara, eu estava
encrencado e não sabia como dar
conta da encomenda. Além da
entrevista com Telê Santana para
a edição de sábado, dia do primeiro jogo das finais do Paulistão
contra o Palmeiras, tinha que cavucar informações para publicar
na semana seguinte, quando o
São Paulo estaria longe, em Tóquio, à espera da decisão do
Mundial interclubes de 1992 contra o Barcelona.
Se o Telê me desse tempo, não
haveria problema. Só que o tempo era curto. Bem cedo, eu deveria pegá-lo no centro de treinamento, onde o técnico morava e
fazia a própria cama, e levá-lo ao
treino no Morumbi.
Era a única chance de conversar a sós. Matutei, relutei, mas
achei que não seria nenhum pecado capital: combinei com o motorista do jornal que ele alongaria
ao máximo o percurso. Iríamos
passear pela cidade.
Telê foi no banco do carona.
Perguntei-lhe qual era o melhor
time que vira na vida. Não foi nenhuma das seleções brasileiras,
mas a Holanda de 1974.
O São Paulo se inspirava nela?
"O que nós procuramos fazer é
jogar no ataque como eles, na
tentativa de ganhar sempre mais.
O carrossel nós procuramos fazer." Lembrei que dias antes chamara sua tática de "revolução
permanente".
O papo ia bem quando o mineiro de Itabirito indagou: "Que caminho é esse?".
O motorista, como combinado,
explicou que era para escapar do
engarrafamento matinal.
Telê falou que em 1982 tentara
contratar Johan Cruijff para treinar o Fluminense, seu clube de coração. O holandês comentava a
Copa para uma TV. Reclamou de
exigências burocráticas para
exercer no futuro a profissão de
técnico na Holanda. Telê ofereceu
o Flu, num plano que a falta de
dinheiro frustrou.
No encontro, sugeriu que Cruijff
parasse de fumar, o que o cérebro
da Laranja Mecânica só viria a
fazer após um infarto. Dentro de
poucos dias, o holandês estaria
sentado no banco do Barcelona,
como seu treinador.
"Ei, por que a gente não foi por
ali?", interrompeu Telê. O motorista inventou outra desculpa,
sem a mesma convicção de antes.
Comentei que o nosso carona e
Cruijff eram os maiores apologistas -e praticantes- do futebol
ofensivo. E soube então que, na
época em que trabalhava na Arábia Saudita, Telê foi técnico do
holandês durante 45 minutos,
numa excursão do Feyenoord.
Qual sua orientação? "Não precisava. Iria dizer o quê?"
Irritado com o possível atraso,
passou a orientar o motorista.
Recordei uma recente bronca
sua porque os jogadores faziam
cera quando venciam por 3 a 0.
"Nunca prendi bola quando era
jogador!"
Chegamos no horário. Cismado
com a demora, não sorriu na despedida. Logo seria campeão
mundial. Era um misto de workaholic, matuto e malandro. Hoje
mora em Minas. Nunca conheci,
no futebol, um cara bacana como
Telê.
A novidade
Será uma grande pena se o movimento dos jogadores do Flamengo servir apenas para piada: ué, eles já não estavam em
greve de futebol havia meses?
Revoltados com o atraso nos
salários e outros pagamentos,
os atletas se recusaram a se concentrar de véspera. Apareceram horas antes do 0 a 0 contra
o Corinthians (se atacasse mais
cedo, e não só no final, o time
de Tite poderia ganhar). Até
aqui, os jogadores assistiam
passivamente à desordem progressiva no futebol brasileiro.
No máximo, buscam na Justiça
seus direitos, mas só depois de
deixarem os clubes. Comparados aos argentinos, são cordeiros. Se o corajoso gesto rubro-negro se expandir, a força que
falta para reagir ao caos pode
mudar o rumo da história.
E-mail
mario.magalhaes@uol.com.br
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