São Paulo, sexta-feira, 01 de outubro de 2004

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FUTEBOL

O dia em que o Telê ficou cismado

MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA

A primeira semana de dezembro chegara, eu estava encrencado e não sabia como dar conta da encomenda. Além da entrevista com Telê Santana para a edição de sábado, dia do primeiro jogo das finais do Paulistão contra o Palmeiras, tinha que cavucar informações para publicar na semana seguinte, quando o São Paulo estaria longe, em Tóquio, à espera da decisão do Mundial interclubes de 1992 contra o Barcelona.
Se o Telê me desse tempo, não haveria problema. Só que o tempo era curto. Bem cedo, eu deveria pegá-lo no centro de treinamento, onde o técnico morava e fazia a própria cama, e levá-lo ao treino no Morumbi.
Era a única chance de conversar a sós. Matutei, relutei, mas achei que não seria nenhum pecado capital: combinei com o motorista do jornal que ele alongaria ao máximo o percurso. Iríamos passear pela cidade.
Telê foi no banco do carona. Perguntei-lhe qual era o melhor time que vira na vida. Não foi nenhuma das seleções brasileiras, mas a Holanda de 1974.
O São Paulo se inspirava nela? "O que nós procuramos fazer é jogar no ataque como eles, na tentativa de ganhar sempre mais. O carrossel nós procuramos fazer." Lembrei que dias antes chamara sua tática de "revolução permanente".
O papo ia bem quando o mineiro de Itabirito indagou: "Que caminho é esse?".
O motorista, como combinado, explicou que era para escapar do engarrafamento matinal.
Telê falou que em 1982 tentara contratar Johan Cruijff para treinar o Fluminense, seu clube de coração. O holandês comentava a Copa para uma TV. Reclamou de exigências burocráticas para exercer no futuro a profissão de técnico na Holanda. Telê ofereceu o Flu, num plano que a falta de dinheiro frustrou.
No encontro, sugeriu que Cruijff parasse de fumar, o que o cérebro da Laranja Mecânica só viria a fazer após um infarto. Dentro de poucos dias, o holandês estaria sentado no banco do Barcelona, como seu treinador.
"Ei, por que a gente não foi por ali?", interrompeu Telê. O motorista inventou outra desculpa, sem a mesma convicção de antes.
Comentei que o nosso carona e Cruijff eram os maiores apologistas -e praticantes- do futebol ofensivo. E soube então que, na época em que trabalhava na Arábia Saudita, Telê foi técnico do holandês durante 45 minutos, numa excursão do Feyenoord. Qual sua orientação? "Não precisava. Iria dizer o quê?"
Irritado com o possível atraso, passou a orientar o motorista. Recordei uma recente bronca sua porque os jogadores faziam cera quando venciam por 3 a 0. "Nunca prendi bola quando era jogador!"
Chegamos no horário. Cismado com a demora, não sorriu na despedida. Logo seria campeão mundial. Era um misto de workaholic, matuto e malandro. Hoje mora em Minas. Nunca conheci, no futebol, um cara bacana como Telê.

A novidade
Será uma grande pena se o movimento dos jogadores do Flamengo servir apenas para piada: ué, eles já não estavam em greve de futebol havia meses? Revoltados com o atraso nos salários e outros pagamentos, os atletas se recusaram a se concentrar de véspera. Apareceram horas antes do 0 a 0 contra o Corinthians (se atacasse mais cedo, e não só no final, o time de Tite poderia ganhar). Até aqui, os jogadores assistiam passivamente à desordem progressiva no futebol brasileiro. No máximo, buscam na Justiça seus direitos, mas só depois de deixarem os clubes. Comparados aos argentinos, são cordeiros. Se o corajoso gesto rubro-negro se expandir, a força que falta para reagir ao caos pode mudar o rumo da história.

E-mail
mario.magalhaes@uol.com.br


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