São Paulo, domingo, 02 de março de 2008

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ENTREVISTA

ALESSANDRO ZANARDI


"Sou um cara comum, não fiz nada de mágico"

Bicampeão da Indy, que perdeu as pernas em acidente na Alemanha, conta como consegue se manter no esporte e sorrir

TATIANA CUNHA
ENVIADA ESPECIAL A CURITIBA

DIFÍCIL PARA quem estava no helicóptero naquele 15 de setembro de 2001 e viu o coração de Alessandro Zanardi parar três vezes imaginar que ele sobreviveria. Muito menos que voltaria a correr após perder as pernas. Mas basta conversar com o piloto para descobrir seu segredo: a paixão pela vida. Bem-humorado e com um inglês macarrônico, Zanardi, 41, falou à Folha sobre o início da temporada no Mundial de turismo, hoje, e do desejo de chegar à Paraolimpíada de Pequim.

 

FOLHA - Qual é sua expectativa antes de outra temporada no WTCC?
ALESSANDRO ZANARDI
- Não quero achar desculpas, mas é claro que agora é muito mais difícil pra mim guiar competitivamente do que era antes. E nosso campeonato está cada vez mais competitivo, a diferença é muito pequena. Muitas vezes temos 20 pilotos no mesmo segundo, e para mim é difícil emergir nesse universo. Mas já consegui ter algum sucesso [venceu duas corridas], o que significa que posso repeti-lo. E é isso que quero fazer.

FOLHA - Você já correu na F-1, na Indy e agora no WTCC. Em qual se divertiu mais?
ZANARDI
- O que me divertia na F-1 era a variedade dos circuitos, a força do carro. Não gostava do fato de os carros serem muito complicados e, do ponto de vista do piloto, não havia muito a ser feito para desenvolver seu próprio carro. Tudo é feito por computadores. Gostava da Indy por isso também, pela força, pela aderência dos carros... Por isso tive meu maior sucesso lá. O que faço hoje é muito divertido, mas vai contra minha natureza. Sou um piloto de monopostos. Até hoje, quando entro em uma curva, espero que o carro reaja melhor. Mas gosto muito da categoria.

FOLHA - Você esteve na F-1 entre 1991 e 1994 e depois em 1999. Como compara essas duas passagens?
ZANARDI
- Como chá e café [risos]. A única coisa em comum é a xícara e a colher. Quando saí, no começo dos 90, a F-1 ainda era um "monstro". Os carros tinham muita força, muita aderência, usávamos pneus de classificação... Era um trabalho duro para os pilotos. Quando voltei, os carros já não tinham tanta força, os pneus tinham ranhuras, e os carros eram muito mais nervosos, como são até hoje. Antigamente dava para errar e segurar no braço.

FOLHA - E por que saiu após somente uma temporada em 1999?
ZANARDI
- Não estava feliz com o jeito que estava dirigindo, não estava me divertindo. Não quero apontar culpados, dizer que era culpa do time [Williams]. Temos que dividir as responsabilidades porque foi uma derrota total para os dois lados.

FOLHA - Depois disso você tirou um ano sabático, mas voltou para a Indy no ano seguinte. Por quê?
ZANARDI
- Pela mesma razão que consegui ter sucesso na carreira: amo o que faço. Não que eu seja viciado, mas, se tenho a opção de correr, por que não? Mas não foi uma decisão inteligente... As coisas podiam até ter sido diferentes se não tivesse tido o acidente. Estava liderando a corrida quando bati, e na prova anterior estive muito perto de vencer. As coisas estavam melhorando, mas não tive tempo de usufruir disso...

FOLHA - Lembra do acidente?
ZANARDI
- Tenho algumas memórias, mas são vagas e confusas. Acho que nem pela batida, mas pela grande perda de sangue. O fim de semana todo é confuso pra mim. Lembro de quando fiz o pit stop e comecei a pensar: a corrida é minha. Na minha cabeça, a única possibilidade de perder a corrida era no pit... Mas como tinha ido tudo bem, pensei: ganhei. Não foi o caso. Lembro de perder o controle do carro e lutar com a direção, mas é tudo muito vago.

FOLHA - E quando soube que havia perdido as pernas?
ZANARDI
- Quando acordei depois de uma semana em coma, minha mulher me contou. Foi uma estratégia que os médicos sugeriram. Eles queriam que ela me contasse antes que eu percebesse sozinho. Eu tinha que estar acordado o suficiente para entender, mas não muito para ver que estava sem pernas. Foi um momento crucial.

FOLHA - Qual foi a parte mais difícil da recuperação?
ZANARDI
- Se estou aqui hoje significa que nada era impossível de superar. Claro que alguns momentos foram piores porque eu não seria humano se não ficasse com raiva pelo que tinha acontecido. Mas incrivelmente alguma coisa sempre acontecia. Uma vez estava tentando colocar minha perna mecânica e não conseguia, a pele estava em carne viva e sangrava muito.
Estava a ponto de quebrar alguma coisa porque estava com raiva. Meu filho, que estava no quarto do lado vendo desenho animado, saiu e deixou o volume muito alto. Quando cheguei no quarto, o desenho tinha terminado e estava passando uma entrevista com o Wayne Rayne, piloto de moto que é paralisado da cintura pra baixo. Vi esse cara sentado num kart, de óculos escuros, sob o sol da Califórnia, falando da escolinha que tinha aberto para deficientes e me senti tão mal... Pensei: não tenho direito de reclamar quando um cara desses está sorrindo e lutando. Foi irônico que aquilo tenha acontecido num momento em que estava quase desistindo. Foi um sinal de Deus.

FOLHA - Acredita em Deus, então?
ZANARDI
- Sim, mas acho que para estar perto de Deus você não precisa estar num determinado lugar, acho que as pessoas usam isso como desculpa para não ficar em casa dormindo.
Somos muito incríveis como máquinas para sermos apenas parte de uma química. Deve haver algo mais do que podemos ver e sentir. Mas acho que temos Deus dentro de nós, porque quando temos a força de olhar para as nossas respostas em nossa alma, sem ler um livro nem seguir ninguém, aí achamos a parte Dele que está na gente. Acredito que isso me ajudou muito na reabilitação, mas não porque achei que tinha de fazer isso porque ia ganhar o paraíso ou porque Ele estava me dando força. Acho que Deus tem coisas muito mais importantes para fazer do que arrumar os parafusos das minhas pernas mecânicas. Se você quer mesmo saber, não creio que Deus tenha nada a ver com minha reabilitação, nunca achei que tinha direito de pedir ajuda, mas sempre agradeci pela vida que tenho, que é preciosa.

FOLHA - Você encara as coisas de uma maneira muito otimista. Serve de modelo para as pessoas?
ZANARDI
- Acredito que meu otimismo foi minha maior força não só no acidente, mas durante a vida. Acho que posso servir de exemplo, como Wayne foi para mim. Algumas pessoas podem ter me visto na TV e pensado: se esse cara faz o que faz, eu posso também. Mas não tenho que me sentir um exemplo. Sou um cara comum, que não fez nada de extraordinário. Fiz o que era possível e não há mágica, só trabalho diário. E o que fiz não foi pelo esporte, pela minha mulher ou meu filho. Fiz por mim, porque amo minha vida e quero o melhor dela. Sempre soube que podia conseguir, não foi surpresa. Às vezes fico desapontado porque nem tudo que tento pode ser atingido, mas 99% das coisas podem.

FOLHA - Em que momento teve vontade de voltar a correr?
ZANARDI
- Nunca perdi a vontade. Sabia que era o mesmo piloto de antes. Quando dizia que não sabia se voltaria era porque estava dependente, não podia nem ir ao banheiro sozinho, precisava ter ajuda para tudo, não podia ficar mais de meia hora em pé. Não dava pra pensar em correr, não era minha prioridade. Mas um ano depois estava vivendo a mesma vida de antes, mais lenta, mas igual.
Ontem [quarta-feira], por exemplo, guiei até Veneza, peguei um vôo até Frankfurt, troquei de avião, fui para São Paulo e, de lá, para Curitiba. Agora estou aqui falando com você e vou para a pista. Se posso fazer isso, posso dirigir um carro. O problema era achar uma maneira de fazer isso. Quando arrumei minha vida, fiquei curioso para saber se tecnicamente poderia correr de novo. Não acho que cheguei no nível que estava antes, mas é um problema mecânico. Quando freio, a sensibilidade não é a mesma que tinha com a perna que a mãe natureza me deu [risos].

FOLHA - Você é mais feliz agora?
ZANARDI
- Acho que o mesmo. Se pudesse voltar no tempo, voltaria, mas só porque seria sete anos mais novo [risos]. A qualidade de vida é a mesma. Tenho uma vida maravilhosa.

FOLHA - Quais são as adaptações no carro que você guia hoje?
ZANARDI
- Minha direção é especial, a embreagem fica acoplada nela. O acelerador fica atrás da direção, e quando viro o volante tenho que acelerar ao mesmo tempo. Freio com o pé, mas tenho um sistema original, com um pedal especial em que minha prótese fica presa.

FOLHA - Como foi vencer pela primeira vez após o acidente?
ZANARDI
- Foi muito especial... Naquele dia, depois de comemorar muito, comecei a perceber o que tinha feito apesar da minha deficiência, algo que não pensei enquanto dirigia ou quando cruzei a linha de chegada. Só estava feliz por ganhar de excelentes pilotos, estava orgulhoso. Só algumas horas e drinques depois foi que me dei conta. Fiquei muito orgulhoso.

FOLHA - Seu filho, Niccolo, vai fazer dez anos. Ele corre? Você o apoiaria?
ZANARDI
- Não, ele não fala sobre isso. Adoraria que ele corresse se amasse o automobilismo como eu amo. A atividade esportiva te transforma em uma pessoa melhor. Não digo que as melhores pessoas sejam atletas, mas o esporte tirou o melhor de mim e me fez ser a melhor pessoa que podia. Na vida você pode se esconder no sistema, mas no esporte, não. Ou você trabalha duro ou não chega a lugar nenhum. Mas, se meu filho se apaixonar por algum esporte, vou apoiá-lo.

FOLHA - E correr a Maratona de Nova York? Como foi?
ZANARDI
- Foi demais... Começou como uma brincadeira. Um dos meus patrocinadores queria que eu fizesse um discurso e falei: sem problemas, mas, já que estarei lá, vou correr. Meu agente disse que aquilo era impossível, e resolvi provar que ele estava errado. Tive três semanas de treino e fui o quarto colocado [em sua categoria].

FOLHA - Você pretende disputar a Paraolimpíada de Pequim?
ZANARDI
- Isso é impossível de planejar. Posso treinar e torcer para ir. Sou muito forte na parte de cima do corpo e, se treinar, acho que posso atingir um bom nível. Acho que meu nome pode me abrir as portas com as autoridades, mas a decisão depende apenas de minha performance. Vou fazer algumas corridas e, se até julho estiver bem, é uma possibilidade. Ainda não estou nesse nível, mas tenho esse sonho de ir a Pequim.


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