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ENTREVISTA
ALESSANDRO ZANARDI
"Sou um cara comum, não fiz nada de mágico"
Bicampeão da Indy, que perdeu as pernas em acidente na Alemanha, conta como consegue se manter no esporte e sorrir
TATIANA CUNHA
ENVIADA ESPECIAL A CURITIBA
DIFÍCIL PARA quem estava no helicóptero
naquele 15 de setembro de 2001 e viu o
coração de Alessandro Zanardi parar três
vezes imaginar que ele sobreviveria. Muito menos que voltaria a correr após perder as pernas.
Mas basta conversar com o piloto para descobrir seu
segredo: a paixão pela vida. Bem-humorado e com um
inglês macarrônico, Zanardi, 41, falou à Folha sobre o
início da temporada no Mundial de turismo, hoje, e
do desejo de chegar à Paraolimpíada de Pequim.
FOLHA - Qual é sua expectativa antes de outra temporada no WTCC?
ALESSANDRO ZANARDI - Não quero
achar desculpas, mas é claro
que agora é muito mais difícil
pra mim guiar competitivamente do que era antes. E nosso campeonato está cada vez
mais competitivo, a diferença é
muito pequena. Muitas vezes
temos 20 pilotos no mesmo segundo, e para mim é difícil
emergir nesse universo. Mas já
consegui ter algum sucesso
[venceu duas corridas], o que
significa que posso repeti-lo. E
é isso que quero fazer.
FOLHA - Você já correu na F-1, na
Indy e agora no WTCC. Em qual se divertiu mais?
ZANARDI - O que me divertia na
F-1 era a variedade dos circuitos, a força do carro. Não gostava do fato de os carros serem
muito complicados e, do ponto
de vista do piloto, não havia
muito a ser feito para desenvolver seu próprio carro. Tudo é
feito por computadores. Gostava da Indy por isso também, pela força, pela aderência dos carros... Por isso tive meu maior
sucesso lá. O que faço hoje é
muito divertido, mas vai contra
minha natureza. Sou um piloto
de monopostos. Até hoje, quando entro em uma curva, espero
que o carro reaja melhor. Mas
gosto muito da categoria.
FOLHA - Você esteve na F-1 entre
1991 e 1994 e depois em 1999. Como compara essas duas passagens?
ZANARDI - Como chá e café [risos]. A única coisa em comum é
a xícara e a colher. Quando saí,
no começo dos 90, a F-1 ainda
era um "monstro". Os carros tinham muita força, muita aderência, usávamos pneus de
classificação... Era um trabalho
duro para os pilotos. Quando
voltei, os carros já não tinham
tanta força, os pneus tinham
ranhuras, e os carros eram muito mais nervosos, como são até
hoje. Antigamente dava para
errar e segurar no braço.
FOLHA - E por que saiu após somente uma temporada em 1999?
ZANARDI - Não estava feliz com
o jeito que estava dirigindo, não
estava me divertindo. Não quero apontar culpados, dizer que
era culpa do time [Williams].
Temos que dividir as responsabilidades porque foi uma derrota total para os dois lados.
FOLHA - Depois disso você tirou um
ano sabático, mas voltou para a Indy
no ano seguinte. Por quê?
ZANARDI - Pela mesma razão
que consegui ter sucesso na
carreira: amo o que faço. Não
que eu seja viciado, mas, se tenho a opção de correr, por que
não? Mas não foi uma decisão
inteligente... As coisas podiam
até ter sido diferentes se não tivesse tido o acidente. Estava liderando a corrida quando bati,
e na prova anterior estive muito perto de vencer. As coisas estavam melhorando, mas não tive tempo de usufruir disso...
FOLHA - Lembra do acidente?
ZANARDI - Tenho algumas memórias, mas são vagas e confusas. Acho que nem pela batida,
mas pela grande perda de sangue. O fim de semana todo é
confuso pra mim. Lembro de
quando fiz o pit stop e comecei
a pensar: a corrida é minha. Na
minha cabeça, a única possibilidade de perder a corrida era no
pit... Mas como tinha ido tudo
bem, pensei: ganhei. Não foi o
caso. Lembro de perder o controle do carro e lutar com a direção, mas é tudo muito vago.
FOLHA - E quando soube que havia
perdido as pernas?
ZANARDI - Quando acordei depois de uma semana em coma,
minha mulher me contou. Foi
uma estratégia que os médicos
sugeriram. Eles queriam que
ela me contasse antes que eu
percebesse sozinho. Eu tinha
que estar acordado o suficiente
para entender, mas não muito
para ver que estava sem pernas.
Foi um momento crucial.
FOLHA - Qual foi a parte mais difícil
da recuperação?
ZANARDI - Se estou aqui hoje
significa que nada era impossível de superar. Claro que alguns
momentos foram piores porque eu não seria humano se não
ficasse com raiva pelo que tinha
acontecido. Mas incrivelmente
alguma coisa sempre acontecia.
Uma vez estava tentando colocar minha perna mecânica e
não conseguia, a pele estava em
carne viva e sangrava muito.
Estava a ponto de quebrar alguma coisa porque estava com
raiva. Meu filho, que estava no
quarto do lado vendo desenho
animado, saiu e deixou o volume muito alto. Quando cheguei
no quarto, o desenho tinha terminado e estava passando uma
entrevista com o Wayne Rayne,
piloto de moto que é paralisado
da cintura pra baixo. Vi esse cara sentado num kart, de óculos
escuros, sob o sol da Califórnia,
falando da escolinha que tinha
aberto para deficientes e me
senti tão mal... Pensei: não tenho direito de reclamar quando
um cara desses está sorrindo e
lutando. Foi irônico que aquilo
tenha acontecido num momento em que estava quase desistindo. Foi um sinal de Deus.
FOLHA - Acredita em Deus, então?
ZANARDI - Sim, mas acho que
para estar perto de Deus você
não precisa estar num determinado lugar, acho que as pessoas
usam isso como desculpa para
não ficar em casa dormindo.
Somos muito incríveis como
máquinas para sermos apenas
parte de uma química. Deve haver algo mais do que podemos
ver e sentir. Mas acho que temos Deus dentro de nós, porque quando temos a força de
olhar para as nossas respostas
em nossa alma, sem ler um livro nem seguir ninguém, aí
achamos a parte Dele que está
na gente. Acredito que isso me
ajudou muito na reabilitação,
mas não porque achei que tinha
de fazer isso porque ia ganhar o
paraíso ou porque Ele estava
me dando força. Acho que Deus
tem coisas muito mais importantes para fazer do que arrumar os parafusos das minhas
pernas mecânicas. Se você quer
mesmo saber, não creio que
Deus tenha nada a ver com minha reabilitação, nunca achei
que tinha direito de pedir ajuda, mas sempre agradeci pela
vida que tenho, que é preciosa.
FOLHA - Você encara as coisas de
uma maneira muito otimista. Serve
de modelo para as pessoas?
ZANARDI - Acredito que meu
otimismo foi minha maior força não só no acidente, mas durante a vida. Acho que posso
servir de exemplo, como Wayne foi para mim. Algumas pessoas podem ter me visto na TV
e pensado: se esse cara faz o que
faz, eu posso também. Mas não
tenho que me sentir um exemplo. Sou um cara comum, que
não fez nada de extraordinário.
Fiz o que era possível e não há
mágica, só trabalho diário. E o
que fiz não foi pelo esporte, pela minha mulher ou meu filho.
Fiz por mim, porque amo minha vida e quero o melhor dela.
Sempre soube que podia conseguir, não foi surpresa. Às vezes
fico desapontado porque nem
tudo que tento pode ser atingido, mas 99% das coisas podem.
FOLHA - Em que momento teve
vontade de voltar a correr?
ZANARDI - Nunca perdi a vontade. Sabia que era o mesmo piloto de antes. Quando dizia que
não sabia se voltaria era porque
estava dependente, não podia
nem ir ao banheiro sozinho,
precisava ter ajuda para tudo,
não podia ficar mais de meia
hora em pé. Não dava pra pensar em correr, não era minha
prioridade. Mas um ano depois
estava vivendo a mesma vida de
antes, mais lenta, mas igual.
Ontem [quarta-feira], por
exemplo, guiei até Veneza, peguei um vôo até Frankfurt, troquei de avião, fui para São Paulo e, de lá, para Curitiba. Agora
estou aqui falando com você e
vou para a pista. Se posso fazer
isso, posso dirigir um carro. O
problema era achar uma maneira de fazer isso. Quando arrumei minha vida, fiquei curioso para saber se tecnicamente
poderia correr de novo. Não
acho que cheguei no nível que
estava antes, mas é um problema mecânico. Quando freio, a
sensibilidade não é a mesma
que tinha com a perna que a
mãe natureza me deu [risos].
FOLHA - Você é mais feliz agora?
ZANARDI - Acho que o mesmo.
Se pudesse voltar no tempo,
voltaria, mas só porque seria
sete anos mais novo [risos]. A
qualidade de vida é a mesma.
Tenho uma vida maravilhosa.
FOLHA - Quais são as adaptações
no carro que você guia hoje?
ZANARDI - Minha direção é especial, a embreagem fica acoplada nela. O acelerador fica
atrás da direção, e quando viro
o volante tenho que acelerar ao
mesmo tempo. Freio com o pé,
mas tenho um sistema original,
com um pedal especial em que
minha prótese fica presa.
FOLHA - Como foi vencer pela primeira vez após o acidente?
ZANARDI - Foi muito especial...
Naquele dia, depois de comemorar muito, comecei a perceber o que tinha feito apesar da
minha deficiência, algo que não
pensei enquanto dirigia ou
quando cruzei a linha de chegada. Só estava feliz por ganhar de
excelentes pilotos, estava orgulhoso. Só algumas horas e drinques depois foi que me dei conta. Fiquei muito orgulhoso.
FOLHA - Seu filho, Niccolo, vai fazer
dez anos. Ele corre? Você o apoiaria?
ZANARDI - Não, ele não fala sobre isso. Adoraria que ele corresse se amasse o automobilismo como eu amo. A atividade
esportiva te transforma em
uma pessoa melhor. Não digo
que as melhores pessoas sejam
atletas, mas o esporte tirou o
melhor de mim e me fez ser a
melhor pessoa que podia. Na
vida você pode se esconder no
sistema, mas no esporte, não.
Ou você trabalha duro ou não
chega a lugar nenhum. Mas, se
meu filho se apaixonar por algum esporte, vou apoiá-lo.
FOLHA - E correr a Maratona de Nova York? Como foi?
ZANARDI - Foi demais... Começou como uma brincadeira. Um
dos meus patrocinadores queria que eu fizesse um discurso e
falei: sem problemas, mas, já
que estarei lá, vou correr. Meu
agente disse que aquilo era impossível, e resolvi provar que
ele estava errado. Tive três semanas de treino e fui o quarto
colocado [em sua categoria].
FOLHA - Você pretende disputar a
Paraolimpíada de Pequim?
ZANARDI - Isso é impossível de
planejar. Posso treinar e torcer
para ir. Sou muito forte na parte de cima do corpo e, se treinar, acho que posso atingir um
bom nível. Acho que meu nome
pode me abrir as portas com as
autoridades, mas a decisão depende apenas de minha performance. Vou fazer algumas corridas e, se até julho estiver bem,
é uma possibilidade. Ainda não
estou nesse nível, mas tenho
esse sonho de ir a Pequim.
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