|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ GERALDO COUTO
O preto e o branco
O suicídio de Castilho e o sorriso fácil de Obina refletem posturas opostas diante do mistério da vida
"VIVA PELÉ do pé preto, viva
Zagallo da cabeça branca", dizia uma velha canção de Gilberto Gil. Hoje tomo emprestados esses versos do compositor e ministro para dizer: "Viva Obina do pé preto, viva Castilho da cabeça branca".
O que têm a ver um com o outro
esses dois jogadores separados por
tantas décadas? Nada. A única coisa
que os une é o meu afeto.
Explico melhor. É que ontem o
suicídio de Castilho completou 20
anos. Pensando sobre o trágico fim
do eterno goleiro do Fluminense, eu
estava prestes a escrever aqui uma
homenagem fúnebre quando lembrei que vários amigos e leitores se
queixaram do tom melancólico das
minhas últimas colunas.
Pois bem: na revista "Placar" que
está nas bancas, uma bela matéria de
Lédio Carmona sobre Obina forneceu o contraponto de que precisava
para não afundar o leitor no luto.
São, cada um a seu modo, duas figuras excepcionais. Castilho jogou
18 anos no gol do Fluminense e participou de quatro Copas do Mundo
(só na de 1954 foi titular). Amava
tanto seu clube e seu ofício que resolveu amputar metade do dedo
mindinho da mão esquerda para se
recuperar mais depressa de uma
contusão e poder voltar logo ao gol.
Considerado milagroso pelos tricolores e um tremendo sortudo pelos adversários (que o apelidaram de
"leiteria", na época sinônimo de "rabudo"), o daltônico Castilho é até
hoje ídolo máximo nas Laranjeiras.
Foi por causa dele, por exemplo,
que Chico Buarque, ainda menino,
resolveu torcer pelo Fluminense.
Dono de uma carreira de títulos e
glórias como jogador e como treinador (no Santos e no Vitória, entre
outros), Castilho se jogou do 6º andar do prédio da ex-mulher aos 59
anos, às vésperas de ir para a Arábia,
onde tinha contrato como técnico.
Seu suicídio causou perplexidade.
Especulou-se que ele estava deprimido porque não queria voltar à
Arábia (já havia trabalhado como
técnico nos Emirados Árabes). Outros dizem que se matou por causa
de uma desilusão amorosa. Nunca
saberemos. Sua morte foi um desses
eventos que nos mostram, de chofre,
o caráter incompreensível da vida.
E onde Obina entra na história?
Ora, entra por contraste -e não só
cromático mas de temperamento.
Se o afinco de Castilho, sua severa
noção do dever, sua determinação
sobre-humana de buscar a perfeição
(foi o primeiro goleiro a estudar os
adversários, o que o levou a defender
seis pênaltis em 52), conferem um
certo peso, uma certa sombra a uma
trajetória que a morte abrupta veio
encerrar com um ponto de interrogação, Obina é pura alegria de viver.
Ou pelo menos é isso o que sua
imagem comunica. Como Edílson e
como Vampeta, Obina confirma o
difundido estereótipo do baiano:
malemolente, dionisíaco, sorrindo o
tempo todo para o mundo, como se,
com a ajuda dos orixás, a vida fosse
uma ladeira que só desce. (Claro que
a Bahia não é só isso: estão aí Dida,
João Gilberto e Glauber Rocha, entre tantos, para borrar o clichê.)
Neste paralelo subjetivo e aleatório, o negro Obina resplandece como um ser solar; o branco Castilho,
como um ser do crepúsculo.
Duas faces do mesmo mistério
que inquietava Hamlet: por que, afinal, temos gana de viver, se a vida é
tão cheia de percalços e dissabores?
E por que, em alguns momentos, para algumas pessoas, a vontade evapora e o que fica é o imenso vazio?
Nesse vazio Carlos José Castilho
mergulhou há 20 anos, sem ter tempo de ver o inexplicável e belo sorriso de Manuel de Brito Filho, o Obina, artilheiro que pode não ser "melhor que Eto'o", como canta a torcida flamenguista, mas que talvez nos
ajude a viver, um dia depois do outro, uma rodada depois da outra, até
que se acabem todas as rodadas e todos os campeonatos.
jgcouto@uol.com.br
Texto Anterior: Romário: FIFA libera atacante para jogar no Vasco Próximo Texto: Odepa veta plano B, e vela pode deixar Pan Índice
|