São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007

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JOSÉ GERALDO COUTO

O preto e o branco

O suicídio de Castilho e o sorriso fácil de Obina refletem posturas opostas diante do mistério da vida "VIVA PELÉ do pé preto, viva Zagallo da cabeça branca", dizia uma velha canção de Gilberto Gil. Hoje tomo emprestados esses versos do compositor e ministro para dizer: "Viva Obina do pé preto, viva Castilho da cabeça branca".
O que têm a ver um com o outro esses dois jogadores separados por tantas décadas? Nada. A única coisa que os une é o meu afeto.
Explico melhor. É que ontem o suicídio de Castilho completou 20 anos. Pensando sobre o trágico fim do eterno goleiro do Fluminense, eu estava prestes a escrever aqui uma homenagem fúnebre quando lembrei que vários amigos e leitores se queixaram do tom melancólico das minhas últimas colunas.
Pois bem: na revista "Placar" que está nas bancas, uma bela matéria de Lédio Carmona sobre Obina forneceu o contraponto de que precisava para não afundar o leitor no luto.
São, cada um a seu modo, duas figuras excepcionais. Castilho jogou 18 anos no gol do Fluminense e participou de quatro Copas do Mundo (só na de 1954 foi titular). Amava tanto seu clube e seu ofício que resolveu amputar metade do dedo mindinho da mão esquerda para se recuperar mais depressa de uma contusão e poder voltar logo ao gol.
Considerado milagroso pelos tricolores e um tremendo sortudo pelos adversários (que o apelidaram de "leiteria", na época sinônimo de "rabudo"), o daltônico Castilho é até hoje ídolo máximo nas Laranjeiras.
Foi por causa dele, por exemplo, que Chico Buarque, ainda menino, resolveu torcer pelo Fluminense.
Dono de uma carreira de títulos e glórias como jogador e como treinador (no Santos e no Vitória, entre outros), Castilho se jogou do 6º andar do prédio da ex-mulher aos 59 anos, às vésperas de ir para a Arábia, onde tinha contrato como técnico.
Seu suicídio causou perplexidade. Especulou-se que ele estava deprimido porque não queria voltar à Arábia (já havia trabalhado como técnico nos Emirados Árabes). Outros dizem que se matou por causa de uma desilusão amorosa. Nunca saberemos. Sua morte foi um desses eventos que nos mostram, de chofre, o caráter incompreensível da vida.
E onde Obina entra na história? Ora, entra por contraste -e não só cromático mas de temperamento.
Se o afinco de Castilho, sua severa noção do dever, sua determinação sobre-humana de buscar a perfeição (foi o primeiro goleiro a estudar os adversários, o que o levou a defender seis pênaltis em 52), conferem um certo peso, uma certa sombra a uma trajetória que a morte abrupta veio encerrar com um ponto de interrogação, Obina é pura alegria de viver.
Ou pelo menos é isso o que sua imagem comunica. Como Edílson e como Vampeta, Obina confirma o difundido estereótipo do baiano: malemolente, dionisíaco, sorrindo o tempo todo para o mundo, como se, com a ajuda dos orixás, a vida fosse uma ladeira que só desce. (Claro que a Bahia não é só isso: estão aí Dida, João Gilberto e Glauber Rocha, entre tantos, para borrar o clichê.)
Neste paralelo subjetivo e aleatório, o negro Obina resplandece como um ser solar; o branco Castilho, como um ser do crepúsculo.
Duas faces do mesmo mistério que inquietava Hamlet: por que, afinal, temos gana de viver, se a vida é tão cheia de percalços e dissabores? E por que, em alguns momentos, para algumas pessoas, a vontade evapora e o que fica é o imenso vazio?
Nesse vazio Carlos José Castilho mergulhou há 20 anos, sem ter tempo de ver o inexplicável e belo sorriso de Manuel de Brito Filho, o Obina, artilheiro que pode não ser "melhor que Eto'o", como canta a torcida flamenguista, mas que talvez nos ajude a viver, um dia depois do outro, uma rodada depois da outra, até que se acabem todas as rodadas e todos os campeonatos.


jgcouto@uol.com.br


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