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MILTON HATOUM
Final de jogo
Dizem que a Alemanha
pode vangloriar-se por
ter feito três boas traduções dos textos árabes de ""As Mil
e Uma Noites". Nós, que infelizmente não temos nenhuma tradução do original, nos contentamos com outras magias. Foram
os gênios brasileiros que, em carne e osso, saíram da garrafa na
última noite da Copa no Oriente.
Nas vésperas do jogo, uma outra batalha estava sendo tramada por Gengis Kahn. O goleiro
alemão foi tão louvado que se
tornou um mito guardião, um
desses pequenos deuses protetores
de uma nação. Mas, diante do
ataque da seleção brasileira, Oliver Kahn virou um mito decaído.
Tenho a impressão de que já estava atônito e perplexo quando
não encaixou o chute de Rivaldo.
Na sobra, Ronaldo (o outro mito,
isto é, o verdadeiro) surgiu da savana japonesa como um felino
tranquilo e colocou a bola no
canto esquerdo do coitado Kahn.
Coitado? Nem tanto. Antes da
partida fatal, o goleiro, com cara
de mau, rugiu desafios ao ataque
brasileiro. Rivaldo respondeu
com humildade, mas firmeza: a
firmeza que faltou ao goleiro no
chute que começou a desenhar o
pesadelo da seleção alemã.
Como tudo é imprevisível no
futebol e na vida. Rivaldo, meio
apagado no primeiro tempo, foi o
co-autor dos dois gols brasileiros
no segundo. Foi uma espécie de
mago no segundo gol de Ronaldo.
Numa fração, fingiu ser o dono
da bola que aparentemente lhe
fora destinada pelo grande Kleberson, atraiu a defesa alemã,
pressentiu os passos de pantera
de Ronaldo, e o deixou livre para
marcar. Parecia um passe de mágica, uma dessas jogadas geniais
de Pelé e Garrincha, que, mesmo
sem tocar na bola, desconcertavam o time adversário.
Depois desse gol, o penta estava
escrito. Em nenhum momento
pensei que a seleção alemã, defensiva e tosca, pudesse empatar
o jogo. A meu ver, a verdadeira final antecipada foi a partida contra a Inglaterra. Esta, sim, ameaçou a seleção brasileira. Virar
aquele jogo foi uma façanha. A
virada foi espetacular, e desse espetáculo participaram a garra, o
talento, a vibração da equipe, e
um gol ao mesmo tempo milagroso e enigmático. Nunca ninguém saberá ao certo se Ronaldinho cruzou a bola ou chutou para fazer gol. Desconfio que nas
duas hipóteses um atacante sonha em fazer um gol; desconfio
também que a trajetória hiperbólica da bola vai apagar a dúvida
sobre a intenção de Ronaldinho.
Foi um golaço tão assombroso e
imprevisível que ficará na memória dessa Copa.
Por coincidência, ou pelas circunstâncias de cada jogo e do desempenho da própria seleção
brasileira, essa Copa foi muito
mais dramática e emocionante
no segundo tempo das três últimas partidas. O chute de bico de
Ronaldo no gol decisivo contra a
Turquia; os dois gols contra a Inglaterra e, nesse mesmo jogo, a
expulsão de Ronaldinho e os 30
minutos finais mais sufocantes
da Copa; finalmente, os dois gols
de Ronaldo contra a Alemanha.
No segundo tempo dessas partidas, a seleção brasileira libertou-se do medo, encontrou seu ritmo,
jogou de uma forma articulada e
harmônica, confiou em si própria. O segundo tempo dessas
partidas foi estouro, libertação e
talento. A combinação de criatividade com disciplina parece ter
sido um dos objetivos alcançados
pelo técnico Scolari. Nesses últimos jogos, ele dirigiu uma seleção
cada vez mais coesa e bem plantada em campo.
A certa altura do segundo tempo da partida final, um lance sem
bola me pareceu fantástico. O jogo foi paralisado para que Edmilson pudesse trocar a camisa rasgada. Edmilson tentou várias vezes vestir a camisa nova. Não dava certo. A cabeça entrava por
uma das mangas, os braços pelo
buraco da cabeça, ou a cabeça e
os braços por buracos errados. O
modelo e o corte da camisa anti-suor dificultaram esse ritual. As
camadas de pano formavam várias camisas, de modo que Edmilson não conseguia livrar-se de
tantos forros com dobras complicadas. O tempo foi passando, e
uma mera troca de camisa tornou-se uma catimba absurda.
Foi meio minuto de graça num
lance meio fantástico, que me fez
lembrar o conto "No se culpe a
nadie", de Julio Cortázar.
O título do livro vem a calhar:
Final do jogo. Não sei se Edmilson sentiu a angústia do personagem de Cortázar. Mas às vezes,
no futebol e na literatura, o imprevisível e o absurdo aparecem
com ar de graça.
Milton Hatoum é escritor, autor dos romances "Relato de um certo Oriente" e
"Dois Irmãos".
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