São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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SUPERAMADOR / CORRIDA DE AVENTURA

Esporte protege e testa atletas "sonâmbulos"

Pesquisa compara os danos provocados por horas sem dormir em sedentários e em pessoas que deliram e até cochilam em pé nas trilhas

Em provas de até sete dias, competidores encaram os efeitos da falta de sono


MARIANA LAJOLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Eles já caminhavam havia horas, o trecho era monótono, sem grandes riscos. Exausto, Rafael Campos não teve dúvida: pediu para um de seus colegas segurar a outra ponta do bastão que usava para se apoiar durante a caminhada e assim não perder o rumo. Continuou a travessia. Só que dormindo.
Metros depois, os colegas lhe pediram detalhes do mapa.
"Eu comecei a falar sobre sanduíches. Meu sonho entrou na conversa", relembra o atleta, navegador de sua equipe.
O cenário era o Mundial de corrida de aventura, realizado há duas semanas, na Suécia.
Andar durante o sono ou dormir entre uma remada e outra são práticas constantes de quem se embrenha nessas grandes competições. As horas de descanso são raríssimas, mas os atletas conseguem completar as provas e não se perder no meio do mato mesmo após vários dias acordados.
O fenômeno intrigou pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo. Afinal, o que faz com que eles consigam se manter lúcidos o suficiente para encarar esses desafios?
A resposta encontrada é simples: a prática de um esporte.
A pesquisa concluiu que, quando em ação, o atleta é mais protegido dos efeitos nocivos das horas e horas em claro.
O estudo tem ajudado os praticantes das corridas de aventura a traçar estratégias para aproveitar melhor os exíguos minutos de sono nas provas.
E também pode ser a base para planos de auxílio a profissionais que precisam enfrentar longos turnos sem dormir, como médicos ou bombeiros.
Nas corridas de aventura, bons preparo físico e psicológico são fundamentais. As provas geralmente envolvem trechos de remo, caminhada e bicicleta, ancorados pela orientação por mapas e bússolas.
Por causa da falta de sono -há equipes que competem sem cochilar-, é comum que atletas delirem e briguem.
"Tem gente que ouve espíritos da floresta, pára várias vezes porque acha que alguém se perdeu... A maior parte das ultrapassagens ocorre à noite", diz Hanna Karen Antunes, pesquisadora do Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício, que coordenou a pesquisa.
Segundo ela, paradas de 20 minutos já podem fazer a diferença na condição dos atletas. "Se ele fica mais de 36, 48 horas sem dormir, apesar de achar que está bem, corre sérios riscos. Sofre mais de depressão, ansiedade, fadiga, estresse, alucinações... Se tiver um trajeto vertical pela frente, a chance de acidente é de 100%", diz.
Na primeira parte da pesquisa, foram acompanhados grupos de atletas em três corridas de aventura no Brasil.
As cobaias passaram por exames antes da prova e tiveram os padrões de sono analisados. Assim que cruzaram a linha de chegada, exaustos, foram "seqüestrados" para novos testes.
Cada competidor perdeu de 6.500 a 10 mil calorias por dia, valor impossível de ser reposto com alimentação diária.
Os resultados da análise do sangue foram assustadores.
"Era como se fossem não-atletas com problemas sérios de saúde", relembra Hanna.
A surpresa, porém, surgiu no exame psicológico. Os atletas perderam sensivelmente as capacidades de memória, atenção e de tomar decisões, mas ficaram na zona de normalidade.
Para descobrir porque isso aconteceu, os pesquisadores simularam uma corrida de aventura em laboratório. E colocaram como espectadores atletas e sedentários, que só dormiam quando as cobaias dormissem -eram liberados para ver TV, jogar videogame e passear.
"Eu participei de uma corrida e fui espectador no laboratório. Foi muito mais difícil ficar acordado sem fazer exercício", afirma Rafael Campos, 29.
O teste mostrou que quem estava em ação sofreu menos danos ao passar mais de 80 horas acordado -dormiram por apenas uma hora. Os sedentários e os outros atletas tiveram os mesmos resultados, piores do que os dos aventureiros.
"Um dos voluntários não conseguiu completar o teste e pediu para sair. Fui levá-lo até o elevador, e ele cumprimentou seu reflexo", conta Hanna.


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