São Paulo, sexta-feira, 03 de novembro de 2006

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XICO SÁ

Ganas de viver

Séries B e C compensam a falta de emoção na divisão principal do Brasileiro, que não traz surpresa alguma

AMIGO torcedor, amigo secador, que bom que Tostão voltou, que bênção, é de longe o cara que melhor decifra os enigmas ludopédicos da praça, a gente sempre aprende alguma coisa com esse cara, que honra para este meia-esquerda frustrado escrever nestas mesmas páginas. Leram o último texto dele, sobre os possessos geniais? Falava sobre Ronaldinho, Pelé, Maradona, mas tratava mesmo era sobre um baita sintoma dos nossos tempos: a falta de agressividade, no sentido mais lato possível.
O craque do Barça, dizia o cronista, é sempre fino, requintado e não se altera, ao contrário do Rei e do gênio Maradona, capazes de transformar uma final de Copa numa enlameada e sangrenta peleja de vida ou morte. Essa falta de "ganas de vivir", como canta o amigo punk Wander Wildner, é o mal do novo século.
Ninguém se toca mais com nada, é uma gente meio anestesiada, parece que diluíram um caminhão de drágeas tarja preta em todas as caixas d'água, ninguém perde a compostura, ninguém chora em público, ninguém vai às vias de fato, como no clichê das crônicas mais antigas. De repente, todo mundo parece ter nascido inglês, é tudo muito cool, frio, falso, ninguém, jovem Werther, morre mais de amor aqui nos trópicos.
Assim, vamos combinar, fica muito vida besta. É café sem cafeína, é cerveja sem álcool, é lei antifumo. Para um membro dos Passionais MCs, como este que vos perturba, perde a graça. Fica mais chato que o Brasileiro, sem surpresa em cima ou embaixo, a não ser que o Palmeiras, com os seus cartolas de terceira, resolva cair mesmo para a Segundona.
Até a bicharada aqui de casa -meu papagaio Florbé, meu corvo Edgar e o meu bode Ressaca- perdeu a gana de resistente secadora. Cansaram de secar o São Paulo, não adianta, esse Muricy sabe montar times, vai até perder do Peixe, que humilhou em todos os clássicos com os paulistas, mas já é tarde, Inês é morta. Está mais sem graça que a moçada do Santa Cruz, que encontrei esta semana na invicta Recife, de óculos escuros para tapar o sol da angústia.
Quando queremos alguma emoção, vamos à várzea, ver Treze x Icasa, no melhor jogo que vi neste ano, dei sorte em estar naquele endiabrado 2 a 2. A Terceirona pega fogo. Até o velho Ferrim, o Ferroviário cearense, voltou a lembrar seus tempos de glória. Pena a situação de Bahia e Vitória, mas ainda creio que todos aqueles orixás e santos dêem jeito.
É, amigo Tostão, na C ainda vemos gols como aqueles que fizeste no Peru de Cubillas, te lembras, lá no Jalisco de Guadalajara? Vi, menino de tudo, numa tevê preto e branco, toda chuviscos e cheia de bombril na antena, na praça pública de Nova Olinda, no Cariri cearense. Só depois, quando saíram as figurinhas do chiclete Adams, com todos os gols de 70, é que vi os lances direito.
Agora me veio no cinemascope da mente a cara do goleiro Banks, mais assustado do que a tela de Munch, no tirambaço de Jairzinho, à queima-roupa, emocionante, recordas?
Na Segundona, a emoção também é quem manda. Que linda a campanha do Sport, como é bom técnico esse Givanildo Oliveira, capaz de milagres, pode ganhar neste ano a sua terceira Segundona. Tomara Deus, ele merece, vamos secar o Galo. O melhor time da Série B, pelo que vimos em vários jogos, é o Náutico, mas cometeu a burrice de trocar de técnico quando disputava a liderança. O que querem os cartolas?
É, amigo Tostão, na B e C temos emoção. Nada melhor, num tempo em que ficou ficou feio se emocionar, não faz sentido, não combina, os apertos de mãos são de mãos cada vez mais molengas, não se abraça mais com gosto. Ficou tudo muito limpinho, asseado, e os bochechos anti-sépticos ainda hão de acabar com o beijo na boca. Mas, pelo menos aqui em casa, nunca!


xico.folha@uol.com.br

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