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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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FUTEBOL

Sou um gênio!

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

- Tira o Bira, seu burro!
- Burro é o filho do seu pai, seu ...
Ôps! O câmera está vindo para cá. Não pega bem eu aparecer falando palavrão. Acho melhor eu só me levantar e dar uma bronca no time: - Pega, pega!
Talvez eu devesse gesticular mais. Vou franzir bem a testa e levar as mãos à cabeça para melhorar o efeito. Acho que ficou bom. Vou gritar de novo: - Olha as costas! Compacta melhor o meio!
"Compacta!" Gostei dessa. É sempre bom dizer umas palavras difíceis. Deixa a gente com um ar inteligente. Não fiz aquele curso de técnico à toa, não.
- Tira o Bira, seu burro!
Não é fácil a vida de treinador. Com esse time, então, é quase um suicídio! Quando eu cheguei, a diretoria prometeu o paraíso. Ia fazer uma parceria com um time da França, ia contratar fulano e beltrano, ia me dar uns juvenis que eram uma geração de ouro... E o pior é que eu acreditei. Hoje estou nesse inferno... O time da França era de Franca, o fulano não acertou com a gente, o beltrano assinou com o time rival, e a tal geração de ouro não chega nem a bronze. Para piorar, estamos perdendo por 1 a 0 e tem uns caras aqui atrás me enchendo o saco desde o começo do jogo:
- Tira o Bira, seu burro!
Esses imbecis não entendem nada de tática. O Bira é um centroavante meio pesadão, mas é a minha referência na área. Está certo que hoje só fez besteira e perdeu dois gols feitos, mas é quem faz o pivô para os que vêm de trás. Adoro essa palavra, "pivô". Acho que o pessoal usa isso no vôlei.
- Tira o Bira, seu burro!
Realmente o Bira não está num bom dia. Mas o meu banco não é grande coisa. O Zé Luís dá uns dribles bonitos de vez em quando, mas não passa a bola nem se eu puser um 38 na testa dele.
- Tira o Bira, seu burro!
Eu devia ter aceitado aquela sociedade que o meu cunhado me propôs. Ser sócio de concessionária ia me dar muito menos dor de cabeça do que ficar sendo xingado debaixo desse solão e tentando fazer aqueles desnutridos entenderem um pouco de estratégia. Mas não, eu fui teimoso...
- Tira o Bira, seu burro!
Ou talvez um bar. Eu sempre quis ter um bar. Só que eu ia dar o maior prejuízo para mim mesmo. - Tira o Bira, seu burro!
Quer saber? Vou tirar. Vou chamar o Zé Luís e mandar ele cair mais para a direita, porque o lateral deles está cansado e já tomou o amarelo. Vou pôr ele ali para ver se, pelo menos, cavo uma expulsão. Aí eu mudo de 4-2-4 para 4-3-3 na variante para o 3-5-2 com a projeção do lateral, e o Zé Luís caindo para o meio.
- Zé Luís, vem cá!
Depois desse escanteio eu coloco o garoto. O Bira não dá mesmo... Opa, a bola vem vindo, o Bira subiu, cabeceou... Gol! Goooool! Nem sei como comemorar! Nem sei porque estou indo para o alambrado, nem sei porque estou pondo o dedo na cara daquele sujeito e dizendo que burro é o filho do pai dele, que eu tenho idéias próprias e não me rendo à opinião da maioria... Sou um gênio!

K
Kristo, de Galiléia (MG), recebeu esse nome porque sua mãe era uma pessoa muito religiosa. A devoção acabou passando para o filho, e Kristo só não se tornou padre porque seu talento como meia-direita era divino. Os gols se multiplicavam aos seus pés. Mas, na decisão do campeonato, ao entrar em campo viu que o goleiro adversário tinha olhos azuis e barba idêntica à do Filho do Homem. Kristo jogou mal, muito mal naquele dia. Chegou até mesmo a desperdiçar um pênalti, talvez por ver o goleiro de braços abertos no meio do gol, igualzinho ao Crucificado. No fim, seu time saiu derrotado por 1 a 0, gol contra de Kristo. Todos em Galiléia acham que ele se vendeu ao outro time. E, para seu desespero, agora o chamam de Judas.

E-mail: torero@uol.com.br

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