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São Paulo, sexta-feira, 04 de abril de 2003

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FUTEBOL

Os técnicos: Parmênides

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Há muitos anos, viveu um grande homem chamado Parmênides. Parmênides de Oliveira.
Seu renome foi firmado nos campos de futebol amador, sempre à frente do Clube Atlético Luz do Saber. Antes dele, o time teve vida apagada: vegetava entre o sexto e o décimo lugares nos campeonatos da cidade.
Parmênides era um sistemático. Ele rejeitava as modificações da ordem natural. Tanto que não cortava o cabelo ou as unhas. Quando outros se queixavam, ele não se importava, apenas respondia com uma de suas frases mais conhecidas: "O que é, é".
Eis a base do pensamento de Parmênides: uma coisa é uma coisa, portanto nunca pode se transformar noutra coisa. Traduzido em termos futebolísticos, significava que um goleiro é um goleiro, um lateral é um lateral e assim por diante. Se alguém quisesse irritá-lo, era só dizer a palavra "improvisação".
Com o apoio dos dirigentes, o técnico-pensador pôs em prática a nova filosofia. E tome treinamentos específicos: os goleiros saltavam, os laterais cruzavam, e os avantes saíam dos treinos meio tontos, tantas as cabeçadas que tinham que dar. Volta e meia os atletas se reuniam para protestar:
- Poxa, professor, vamos fazer um rachão, um bobinho, um "dois toques"!
Inútil. Parmênides dizia que eles só seriam alguém se se dedicassem a alcançar o ápice de suas potencialidades.
- Ápice?
- Ó, ignaros! Ápice vem do latim apex. Era um espigão de pau de oliveira envolto em lã que os sálios traziam no alto de seus barretes. Agora voltem a treinar!
O fato é que o Luz obteve uma série de vitórias brilhantes. E, mais importante, jogando bonito: as antecipações, os passes, os chutes, tudo era feito com uma eficiência que beirava a perfeição.
No banco, o técnico sorria:
- O que é, é!
Com tal desempenho, nada mais natural que o time chegasse à final do Campeonato de Várzea de Pirassununga. O adversário foi o Grêmio Descalvadense.
Naquele dia, no entanto, aconteceu o fato que marcou a história do futebol do interior. Os mais velhos certamente se lembrarão.
O Luz do Saber vencia por 1 a 0 e estava a dez minutos do título longamente desejado. Ao fazer uma defesa, porém, seu goleiro se chocou contra a trave e perdeu os sentidos. Aí surgiu o dilema: não havia outro goleiro no banco, o reserva imediato amanhecera com 40 graus de febre.
Mesmo diante de reiterados apelos, Parmênides não cedeu. Preferiu deixar o gol vazio a colocar um atleta da linha debaixo das traves.
- Antes perder o título que perder a coerência.
Parmênides realmente não perdeu a coerência. Mas perdeu o título. E o emprego.
Conta-se que anos depois, passando por dificuldades, o velho treinador procurou a diretoria do Luz em busca de nova chance. A resposta teve um quê de ironia:
- O que era, era.

R
Rui, alcunhado "O Ruim", foi um grande médio-volante. Daqueles que não perdem viagem, daqueles que não têm dó nem pena. Ele não hesitava em dar carrinhos por trás, em cuspir nos olhos dos adversários, em dar-lhes cotoveladas nos dentes, cabeçadas nos narizes e joelhadas em outros lugares. Rui era considerado o jogador mais desleal que já pisou nos gramados da cidade de Bofete e havia mesmo quem dissesse que era filho de demônios. Porém, no final da vida, para surpresa geral, Rui, alcunhado "O Ruim", criou uma igreja e virou pastor. Hoje, por alguns generosos trocados, tira encostos, faz curas milagrosas, promove casamentos e manda almas para o paraíso eterno. Há quem diga que se arrependeu. Há quem diga que se aprimorou.

E-mail torero@uol.com.br


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