São Paulo, domingo, 04 de agosto de 2002

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FUTEBOL

O medo na hora do pênalti

ARTHUR NESTROVSKI
COLUNISTA DA FOLHA

Que tal entrar em campo aos 49min do segundo tempo, numa final da Libertadores, ser escalado para bater um dos pênaltis que decidirão o jogo e a chance de disputar o Mundial com o Real Madrid, caminhar rumo à bola com o empate em 2 a 2, saborear por antecipação o estouro da torcida, um segundo após a bola estourar o alto das redes, pôr o pé nela com toda a confiança -e ver tudo sumir instantaneamente, acompanhando a trajetória velocíssima da esfera que se vai um metro acima da trave?
E que tal ser o próximo a bater, com o adversário um gol à frente?
A entrada nos acréscimos deu um toque extra de dramaticidade às tragédias de Marlon e Serginho, quarta-feira, no Pacaembu. E a repetição, pela terceira vez desde 2001, de uma derrota do São Caetano em final de campeonato já é o bastante para se falar em trauma, sintoma, destino.
Mas a verdade é que a cena se tornou quase comum, desde que as decisões por pênaltis foram adotadas internacionalmente, na década de 80. Com os jogos transmitidos pela TV, as prorrogações quase não acontecem mais, porque atrasam muito o programa seguinte. Sem falar que a dose mínima de sado-masoquismo envolvida no show dos pênaltis não deixa de ter seus atrativos.
O rosto de Baggio: quem esquece a expressão do goleador budista italiano, na final da Copa de 1994, contra o Brasil, após bater seu pênalti "como uma cambaxirra"? (Era Nelson Rodrigues quem falava em cambaxirras; e seria preciso um cronista-dramaturgo como ele, para dar conta da catástrofe dos são-caetanenses.)
O jornalista inglês Andrew Anthony dedicou um livro inteiro ao tema: "On Penalties" (Yellow Jersey Press, 2000). Para os ingleses, a mera idéia da coisa provoca calafrios. Várias partidas decisivas da seleção foram perdidas nos pênaltis. A leitura, entre divertida e angustiante, do livro, revela o que já se sabe: hoje em dia, o ônus do pênalti é muito maior para o atacante do que para o goleiro. Antigamente não era assim.
É certo que o goleiro jamais teve obrigação de defender uma bola chutada, livremente, daquela distância. Mas um pênalti perdido pertencia ao domínio do estapafúrdio, do absurdo, do grotesco. Um pênalti jogado para fora era um acidente fatídico, uma expressão de irracionalidade avassaladora. A sombra do impossível sempre coloriu, decerto, a expectativa de quem assistia a uma cobrança. Mas era o tempero da alegria. Um tempero quase voluntário, que servia para aumentar essa felicidade 99% garantida.
Para todos os efeitos, valia a equação secular: pênalti = bola na rede. O goleiro tremia.
E agora?
Ninguém aposta com segurança no atacante, quando tem pela frente um Dida, um Rogério, um Marcos. Até Tavarelli (do Olimpia) impõe respeito, e não só nas circunstâncias especiais do São Caetano, precisando só de um empate, após ganhar no Paraguai; saindo na frente, mas permitindo a virada; e sentindo a iminência de mais um vice-campeonato entalado na garganta.
Estatística de Anthony: quase 30% dos pênaltis cobrados vão para fora, ou são defendidos. Será que Marlon pensava nisso, enquanto escolhia como bater?
Mas não estava escrito no rosto dele que chutaria para fora? Vendo pela TV, com o benefício das câmaras, que não escondem um centímetro de angústia humana nessas horas, quem não sabia, também, que Serginho já tinha perdido o pênalti, ao vê-lo cruzar a linha da grande área, antes sequer de dar a clássica ajustadinha na bola?
Em cada partida, é possível ver uma tragédia de Dostoiévski, dizia Nelson Rodrigues. Dostoiévski é pouco para o que se viu na quarta-feira, confortavelmente abrigados do frio nas nossas inocentes casas. Pobre Marlon, pobre Serginho. Estão, agora, "naquele ponto onde começa tudo a nascer do perdido, lentamente", como dizia o poeta Drummond (outro que saberia comentar com sabedoria a derrocada do Azulão).
Poucos times brasileiros terão passado pelo que o São Caetano vem passando. A imagem de Jair Picerni, expulso de campo e assistindo ao impensável da entrada do vestiário, quase literalmente do fundo do poço, entrará para a saga nacional. Recém-fundado, há meros 12 anos, o time tem uma história e tanto para contar, mesmo se não chegou ainda ao final feliz. Enfim: de alegrias, basta as que o São Paulo vai nos dar, agora, com Reinaldo, Luís Fabiano e Leandro. E tristezas terão de sobra aqueles outros dois.

E-mail nestrovski@uol.com.br


Tostão, em férias, volta a escrever neste espaço em 4 de setembro


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