Autor canadense lista "compra" de resultados também em Olimpíada, Mundial de futebol feminino e torneios nacionais

Segundo "The Fix: Soccer and Organized Crime", até o presidente da Fifa suspeitou de que viu partida arranjada no maior torneio do futebol

RAFAEL MARANHÃO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Sentado na tribuna de honra de um estádio na Alemanha assistindo a uma partida do torneio mais importante do futebol, Joseph Blatter, o presidente da Fifa, a entidade que comanda o esporte com maior número de seguidores no planeta, teve a sensação de que estava vendo um jogo arranjado.
No mesmo Mundial, o chefe da maior rede de manipulações de resultados do Sudeste da Ásia assegura ter "comprado" o resultado de quatro confrontos. Um deles, a vitória do Brasil por 3 a 0 sobre Gana, pelas oitavas-de-final, no dia 27 de junho de 2006, em Dortmund.
Essas e muitas outras revelações estão num livro que chegou às prateleiras de sete países nesta semana e colocou em xeque Copa do Mundo, Olimpíada e até o Mundial de futebol feminino, numa lista de competições vítimas de esquemas de manipulação de resultados da qual fazem parte o Campeonato Brasileiro e ligas como a alemã, a portuguesa e a italiana.
Escrito pelo jornalista canadense radicado na Inglaterra Declan Hill, o livro "The Fix: Soccer and Organized Crime" é fruto de quatro anos de trabalho e mais de 200 entrevistas realizadas ao redor do mundo.
Durante longo tempo, Hill acompanhou os casos de resultados arranjados em países como China, Cingapura e Malásia. Assim, chegou ao encontro do chefe da principal rede de apostas ilegais, o "arranjador de resultados número um" da região, cuja real identidade não é revelada. No livro, ele é chamado de Lee Chin.

O acordo
Segundo Declan Hill, Chin organizou um encontro em Bancoc, na Tailândia, em maio de 2006, com dois parceiros chineses e um "representante" ganense para firmar um acordo em torno das partidas do Mundial que teria início no mês seguinte na Alemanha. A seleção de Gana seria o principal alvo das apostas no campeonato, "graças a cooperações no passado", segundo Chin.
"Durante a Copa do Mundo, recebi quatro telefonemas de Chin informando os resultados das partidas em que ele havia apostado. Todos os jogos terminaram como ele havia afirmado. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Não sei exatamente o motivo de ele ter confiado em me dizer isso, mas acho que era por satisfação pessoal, por querer demonstrar seu poder e para que as pessoas soubessem que ele existia", afirma Hill, que diz estar "brincando com fogo" e temer pela própria segurança.
Além de Brasil 3 x 0 Gana, os outros três jogos cujo placar Chin declara ter acertado foram: Itália 2 x 0 Gana, pela primeira fase, Inglaterra 1 x 0 Equador, pelas oitavas-de-final, e Itália 3 x 0 Ucrânia, pelas quartas-de-final.
Todos eram casos de duelos entre grandes potências do futebol mundial e equipes emergentes. A vitória dos favoritos seria, de certa forma, esperada.
Por isso, as apostas de Chin estariam ligadas ao resultado da partida, já que a derrota dos azarões não seria surpresa.
"Uma das maneiras de evitar suspeitas e convencer os jogadores é negociar resultado de jogos em que a derrota já é esperada. Como disse um entrevistado: "Se você vai enfrentar o Brasil e vai ser eliminado, por que não fazê-lo recebendo US$ 30 mil?".", afirma o autor.
Numa rápida busca na internet, é possível encontrar vários relatos sobre a vitória brasileira sobre Gana em jornais dos mais diferentes países fazendo menção às muitas oportunidades de gol perdidas pelos ganenses e a maneira como os africanos dominaram boa parte da partida.
Foi nesse mesmo jogo que o atacante Ronaldo marcou uma vez e se tornou o maior artilheiro da história dos Mundiais, com 15 gols, superando o recorde do alemão Gerd Müller.
Um ano depois da Copa-2006, Hill encontrou-se em Gana com os jogadores que estiveram na Alemanha.
Lá, o capitão da seleção africana, o meia Stephen Appiah, confirmou que um representante de Chin circulava livremente pela concentração da equipe durante o Mundial.
Appiah disse que houve, sim, proposta para que os ganenses entregassem um jogo, mas não contra Brasil ou Itália, e garante que a proposta não foi aceita.
O jogador do Fenerbahce, da Turquia, afirma ainda que a seleção de Gana esteve envolvida em armação de resultados de jogos no Mundial sub-17 na Malásia, em 1997, e nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004.
O contato entre Chin e a seleção de Gana foi feito por intermédio de um ex-goleiro e treinador ganense chamado Abukari Damba. Afastado da seleção após ter sido pego negociando o resultado de um amistoso contra o Irã em 2007, Damba esteve no encontro entre um outro representante de Lee Chin e Appiah na concentração de Gana durante a última Copa do Mundo.
No livro, Chin cita jogos de outros dois torneios em que esteve envolvido, a Olimpíada de Atlanta, em 1996, na derrota da Tunísia por 2 a 0 para Portugal, e em duas partidas do Campeonato Alemão de 2005. Uma delas, a vitória do Hannover sobre o Kaiserslautern por 5 a 1, era um jogo considerado suspeito por casas de apostas européias.
As revelações de Hill, publicadas pela revista "Der Spiegel" no último sábado, motivaram um comunicado conjunto da Federação Alemã de Futebol (DFB) e da Liga Alemã (DFL), afirmando não terem conhecimento sobre a "eventual manipulação de partidas", mas anunciando que as partidas serão analisadas e que existe a possibilidade de ser aberto um processo para analisar o caso.

A Fifa sabia
"The Fix" atinge até o futebol feminino. O livro revela que a Fifa tinha conhecimento da tentativa de oferecer dinheiro à seleção de Gana para que sofresse derrota por cinco gols de diferença para a Noruega, pela última rodada da primeira fase do Mundial de 2007, na China.
Atletas ganesas disseram ter sido abordadas por intermediários de um grande apostador. Eles ofereceram US$ 22 mil e um computador portátil a um grupo específico de atletas: goleira, zagueiras e uma meio-campista. Dirigentes da federação ganesa informaram à Fifa e ao comitê organizador, que nada fizeram. Placar da partida: 7 a 2 para a Noruega.
À exceção de alguns relatos pessoais do autor e das explicações que talvez causem estranheza a um fã de futebol, mas necessárias para o público canadense e americano, pouco familiar ao esporte, "The Fix" é feito quase todo de material extremamente relevante.
Além de casos históricos de manipulação de resultados (não só no futebol mas também em hóquei sobre o gelo, remo e críquete) e de um guia bastante didático das técnicas dos atletas para evitar suspeitas, o livro, que não tem previsão de lançamento no Brasil ou em Portugal, traz entrevistas com grandes autoridades do futebol mundial e personagens desconhecidos que parecem ter igual ou até maior poder no destino do mais popular dos esportes.
Um dos pontos altos é a frase do mesmo homem que suspeitou sem querer acreditar no que via num estádio na Alemanha. "Se isso for verdade, nós falhamos. Nós falhamos. Eu não acredito, não acredito, não acredito", disse Joseph Blatter.


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