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FUTEBOL
Lembranças do Carnaval
TOSTÃO
Quando eu era jovem (faz tanto
tempo!), ia com os amigos do bairro brincar o Carnaval na praia de
Marataízes, no Espírito Santo.
Saíamos no sábado, viajávamos
de carro ou trem durante todo o
dia, para pegar o início da festa.
Antes de ir para o baile, esquentávamos os tamborins e os motores do corpo com a bebida que fosse mais acessível. A farra completa era pular o muro do clube todos
os dias, entrar sem pagar, sambar
bastante e adormecer na praia,
vendo o belíssimo nascer do sol
nos braços da mulher paquerada.
Como eu já jogava no Cruzeiro
e era conhecido, as coisas para
mim eram um pouco mais difíceis. Quando pulava o muro, o
guarda cruzeirense fingia que não
me via e aí perdia a graça. Meu irmão Célio, ao contrário, passava
toda a noite pulando pra dentro e
pra fora, correndo do guarda. Lá
pelas cinco da manhã o guarda
cochilava e ele entrava triunfante
para animar os bebuns, foliões e
os dorminhocos.
Dentro do clube, havia um folião fantasiado de médico, de
doutor Zerbine (ele fez o primeiro
transplante de coração no Brasil).
Doutor Zerbine distribuía bebidas
no conta-gotas. Era tomar e pular.
Meu amigo magrinho ficava tão
eufórico que pulava e batia a cabeça no teto. No final da festa, os
grandes consumidores desmaiavam nos banheiros, principalmente no das mulheres.
Foram ótimos tempos, que voltam sempre que eu desejar. No
pensamento, viajo e ninguém me
segura. Vou ser o maior folião
deste Carnaval.
O Carnaval se aproximava e Dedé não sabia o que fazer. Ele era o
maior craque de futebol do Brasil
e iria disputar o título mundial. A
partida decisiva seria na quinta-feira, logo após o carnaval, no
Maracanã, contra uma equipe estrangeira.
Além de jogador, Dedé era um
famoso passista. Há mais de dez
anos que ele desfilava de porta-estandarte da escola. Sua ausência
poderia ser decisiva na escolha final dos melhores do Carnaval.
Pra ele, a festa era mais importante que o futebol. Tentou convencer o técnico que a equipe não
seria prejudicada com sua participação no Carnaval. O jogador
prometeu dançar à noite e dormir
durante o dia. Na quarta-feira, estaria na concentração do time em
boas condições físicas para jogar
no dia seguinte.
O técnico não acreditou nas
promessas do sambista. Todos os
jogadores estariam concentrados
nos dias de Carnaval, e Dedé não
poderia ter privilégios. Se não se
apresentasse com os outros, não
jogaria, seria multado e seu passe
colocado à venda.
O jogador não conseguiu dormir nos dias anteriores ao Carnaval. Além de desfilar de porta-estandarte, queria sambar todas as
noites. Esperara todo o ano por
aqueles momentos e não queria
perdê-los.
No sábado, o treinador ficou
plantado na porta do hotel, esperando os jogadores. Aos poucos,
todos foram chegando tristes e cabisbaixos. O técnico esperou até as
11 horas. Dedé não apareceu.
No quarto, quando o técnico ligou a tevê, lá estava seu craque,
todo fantasiado e feliz, sambando
na avenida. Todas as noites Dedé
brincou e dançou como nunca tinha feito antes. De dia ele dormia
e à noite brincava. Recebeu nota
dez de todos os jurados. Sua escola
foi a campeã do Carnaval e ele escolhido o carnavalesco do ano o
rei do samba no pé.
Na quarta-feira o técnico foi demitido. A diretoria, sem ninguém
saber, prometeu ao jogador que se
ele não bebesse e dormisse oito horas durante o dia, ela convenceria
o técnico que o jogador poderia
brincar no Carnaval e atuar na
quinta-feira.
Como o treinador não aceitou a
proposta, foi demitido. Dedé jogou como nunca e fez o gol da vitória. Deu um outro show e foi
eleito o rei da bola no pé.
Quando eu era médico e professor da Faculdade de Medicina,
convivi com alguns estranhos alunos e médicos residentes.
Havia um, extremamente disciplinado, responsável, contido,
triste e tímido.
O jovem doutor dava mais plantões durante o ano para ganhar os
quatro dias de folga.
No Carnaval, o tímido médico
se transformava no mais alegre
folião. Brincava as quatro noites,
se desinibia totalmente, fantasiava-se de mulher -tudo com uma
imensa alegria.
Na quinta-feira, às oito em ponto, ele voltava à sua rotina de médico austero e calado.
Um dia, perguntei a ele o que
dava mais prazer: a alegria do
carnaval ou o convívio com a
doença, o sofrimento e a morte?
Ele não vacilou, para minha surpresa: ""A vida de médico". Como
é estranho o ser humano!
tostao.folha@uol.com.br
Tostão escreve aos domingos e às quartas-feiras
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