São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Lembranças do Carnaval

TOSTÃO
Quando eu era jovem (faz tanto tempo!), ia com os amigos do bairro brincar o Carnaval na praia de Marataízes, no Espírito Santo. Saíamos no sábado, viajávamos de carro ou trem durante todo o dia, para pegar o início da festa.
Antes de ir para o baile, esquentávamos os tamborins e os motores do corpo com a bebida que fosse mais acessível. A farra completa era pular o muro do clube todos os dias, entrar sem pagar, sambar bastante e adormecer na praia, vendo o belíssimo nascer do sol nos braços da mulher paquerada.
Como eu já jogava no Cruzeiro e era conhecido, as coisas para mim eram um pouco mais difíceis. Quando pulava o muro, o guarda cruzeirense fingia que não me via e aí perdia a graça. Meu irmão Célio, ao contrário, passava toda a noite pulando pra dentro e pra fora, correndo do guarda. Lá pelas cinco da manhã o guarda cochilava e ele entrava triunfante para animar os bebuns, foliões e os dorminhocos.
Dentro do clube, havia um folião fantasiado de médico, de doutor Zerbine (ele fez o primeiro transplante de coração no Brasil). Doutor Zerbine distribuía bebidas no conta-gotas. Era tomar e pular. Meu amigo magrinho ficava tão eufórico que pulava e batia a cabeça no teto. No final da festa, os grandes consumidores desmaiavam nos banheiros, principalmente no das mulheres.
Foram ótimos tempos, que voltam sempre que eu desejar. No pensamento, viajo e ninguém me segura. Vou ser o maior folião deste Carnaval.
O Carnaval se aproximava e Dedé não sabia o que fazer. Ele era o maior craque de futebol do Brasil e iria disputar o título mundial. A partida decisiva seria na quinta-feira, logo após o carnaval, no Maracanã, contra uma equipe estrangeira.
Além de jogador, Dedé era um famoso passista. Há mais de dez anos que ele desfilava de porta-estandarte da escola. Sua ausência poderia ser decisiva na escolha final dos melhores do Carnaval.
Pra ele, a festa era mais importante que o futebol. Tentou convencer o técnico que a equipe não seria prejudicada com sua participação no Carnaval. O jogador prometeu dançar à noite e dormir durante o dia. Na quarta-feira, estaria na concentração do time em boas condições físicas para jogar no dia seguinte.
O técnico não acreditou nas promessas do sambista. Todos os jogadores estariam concentrados nos dias de Carnaval, e Dedé não poderia ter privilégios. Se não se apresentasse com os outros, não jogaria, seria multado e seu passe colocado à venda.
O jogador não conseguiu dormir nos dias anteriores ao Carnaval. Além de desfilar de porta-estandarte, queria sambar todas as noites. Esperara todo o ano por aqueles momentos e não queria perdê-los.
No sábado, o treinador ficou plantado na porta do hotel, esperando os jogadores. Aos poucos, todos foram chegando tristes e cabisbaixos. O técnico esperou até as 11 horas. Dedé não apareceu.
No quarto, quando o técnico ligou a tevê, lá estava seu craque, todo fantasiado e feliz, sambando na avenida. Todas as noites Dedé brincou e dançou como nunca tinha feito antes. De dia ele dormia e à noite brincava. Recebeu nota dez de todos os jurados. Sua escola foi a campeã do Carnaval e ele escolhido o carnavalesco do ano o rei do samba no pé.
Na quarta-feira o técnico foi demitido. A diretoria, sem ninguém saber, prometeu ao jogador que se ele não bebesse e dormisse oito horas durante o dia, ela convenceria o técnico que o jogador poderia brincar no Carnaval e atuar na quinta-feira.
Como o treinador não aceitou a proposta, foi demitido. Dedé jogou como nunca e fez o gol da vitória. Deu um outro show e foi eleito o rei da bola no pé.
Quando eu era médico e professor da Faculdade de Medicina, convivi com alguns estranhos alunos e médicos residentes.
Havia um, extremamente disciplinado, responsável, contido, triste e tímido.
O jovem doutor dava mais plantões durante o ano para ganhar os quatro dias de folga.
No Carnaval, o tímido médico se transformava no mais alegre folião. Brincava as quatro noites, se desinibia totalmente, fantasiava-se de mulher -tudo com uma imensa alegria.
Na quinta-feira, às oito em ponto, ele voltava à sua rotina de médico austero e calado.
Um dia, perguntei a ele o que dava mais prazer: a alegria do carnaval ou o convívio com a doença, o sofrimento e a morte? Ele não vacilou, para minha surpresa: ""A vida de médico". Como é estranho o ser humano!


tostao.folha@uol.com.br


Tostão escreve aos domingos e às quartas-feiras




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