São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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FUTEBOL

Futebol fora do tempo

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Parece quase uma frivolidade escrever sobre futebol na véspera de um dia tão decisivo para a vida do país.
Mas talvez essas duas coisas não estejam assim tão dissociadas. Além disso, se a política é, por um lado, maior que o futebol -o resultado das eleições de amanhã, por exemplo, é infinitamente mais importante que o dos jogos de hoje-, o futebol também pode ser maior que a política.
Para explicar o que quero dizer, talvez seja útil lembrar o filme "Pra Frente, Brasil", realizado por Roberto Faria em 1981.
Quem viu a fita sabe que se trata de uma história situada em 1970, quando, ao mesmo tempo em que o Brasil ganhava sua terceira Copa do Mundo, os opositores do regime militar eram torturados, mortos ou banidos do país.
Pois bem. Quando assisti ao filme, imbuído de um sentimento de resistência democrática et cetera e tal, confesso que o que mais me deu prazer foi rever, na tela grande, os gols maravilhosos da seleção que brilhou no México.
Na época senti até um pouco de vergonha por isso, mas hoje vejo a coisa de outro modo.
Quando o futebol atinge momentos de beleza e poesia que transcendem a mera competição esportiva, seu alcance vai muito além do tempo em que está inserido. Esses momentos se eternizam. Em outras palavras: os governos -democráticos ou tirânicos- passam, os gols de Pelé ficam.
Uma das virtudes da arte -e estou convencido de que o futebol, ao menos em seus pontos altos, é uma arte- é a de ultrapassar seu tempo, ou melhor, dar um novo sentido ao tempo e à sua mensuração.
Ninguém mais usa as túnicas dos gregos do século quinto antes de Cristo, muito menos seus métodos de comunicação ou seu sistema eleitoral. Mas uma tragédia de Sófocles ainda nos toca como se tivesse sido escrita hoje.
Indiferente à duração cronológica, a arte faz com que o minuto tenha o peso do milênio, e vice-versa, numa espécie de vertigem temporal.
Veja, por exemplo, o que aconteceu no estádio do Pacaembu, anteontem à noite.
Jogavam Corinthians e Santos. Aos 18min do primeiro tempo, a zaga corintiana afasta defeituosamente uma bola e, de costas para o gol, o atacante santista Alberto tem um "insight" genial e faz o que ninguém esperava: gira no ar como um acrobata e dá uma das bicicletas mais perfeitas dos últimos anos.
Numa fração de segundo, Alberto -um jogador mediano, pelo menos até agora- inscreveu seu gesto e seu nome indelevelmente na memória de quem estava vendo o jogo. (Quem viu o gol em algum telejornal certamente teve uma outra percepção, menos emocional, do lance.)
O fato é que aquele instante de magia e loucura tirou a partida dos eixos, deixando os corintianos aturdidos e insuflando uma carga extra de energia e autoconfiança nos meninos do Santos.
Há quem defenda que um gol de bicicleta vale tanto quanto um gol de canela ou um gol contra. Numericamente, sim, é claro. Mas um golaço como o de Alberto muda o panorama do jogo, o estado de espírito dos jogadores, o clima de toda uma noite.
Tanto quanto a bicicleta, foi lindo ver a torcida corintiana, na mesma partida, tentando consertar seu time, restaurar suas engrenagens e recolocá-lo de pé na base do grito e do canto.
Faltou pouco.

Decisão 1
O jogo do São Paulo contra o Flamengo, hoje, no Maracanã, é decisivo para o futuro do técnico tricolor Oswaldo de Oliveira. Assim como os torcedores na arquibancada, vários leitores são-paulinos manifestaram durante a semana muitas dúvidas quanto à capacidade do treinador em organizar e fazer render seu elenco de estrelas. Uma derrota no Rio de Janeiro pode ser a gota d'água.

Decisão 2
O clássico Palmeiras x Portuguesa também está carregado de dramaticidade. A Lusa tenta voltar às proximidades da zona de classificação, e o Palmeiras ainda busca sair da lanterna, numa luta cruel contra o tempo. Como disse Zinho depois da última partida, é uma pena que o time tenha custado tanto a se acertar. Agora, cada jogo é como um passo (ou uma dança) à beira do abismo.

E-mail jgcouto@uol.com.br



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