São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Juca Kfouri
Nem o maior sonhador sonharia


Como Dom Quixote, só o torcedor é capaz de sonhar sonhos impossíveis; o bom é que, às vezes, dá certo


TORCEDOR SONHA de olhos abertos. E, qual um Dom Quixote, sonha os sonhos mais impossíveis. Primeiro, ele sonha com a vitória do seu time. Ele imagina como será o triunfo e sempre acrescenta pitadas de dramaticidade.
Jamais sonha com uma vitória simples, dessas corriqueiras. Ou será conquistada nos minutos finais, de virada, ou, no mínimo, será de goleada, histórica.
Sonhar apenas com um jogo, no entanto, é pouco. Torcedor sonha acordado com a conquista do título, com a taça, estadual, nacional, continental, mundial. Torcedor não deixa por menos. Jamais.
Ser o melhor do mundo, na verdade, é só com o que o torcedor pode sonhar. Seja ele torcedor de quem for, não importa.
Torcedor sonha de olhos abertos com o seu time e com os seus ídolos. Primeiro, o time. Depois, o ídolo. Ou vice-versa, em alguns poucos casos. Como, por exemplo, quando time e ídolo se confundem, se fundem. Santos e Pelé, Pelé e Santos. Flamengo e Zico, Zico e Flamengo. Palmeiras e Ademir da Guia e assim por diante.
O mais sonhador dos torcedores santistas nos tempos de Pelé sonhava em ver seu time passar anos e anos sem perder do maior rival na cidade de Santos, aquele que tinha mais torcedores que o próprio Santos em sua casa. E o Santos realizou seu sonho, ficou mais de 11 anos sem perder do Corinthians.
Mas só não perder para o adversário era pouco. Tinha que ser campeão. E Pelé tinha que ser o artilheiro. Pois o Santos ganhava tudo o que disputava, e Pelé era invariavelmente o artilheiro. Tinha, ainda, que conquistar o mundo. E o Santos, além de conquistá-lo, tratou de caprichar tanto na primeira vez que goleou o Benfica, no lendário Estádio da Luz, em Lisboa, por 5 a 2, naquela que Pelé diz ter sido a melhor exibição dele e do seu time na história de sua equipe e dele.
Jamais houve torcedor tão feliz como o torcedor santista nos tempos do Rei Pelé. Jamais.
Há quem diga que sonhos realizados perdem muito de sua graça. Pode até ser. Principalmente se o sonho for material. O cara sonha com um carro, consegue comprá-lo e, em seguida, se dá conta de que nem era para tanto. O outro sonha em conhecer Paris e, depois que a conhece, provavelmente por falta de sensibilidade, desdenha dela. E assim por diante.
Já com o torcedor que sonha de olhos abertos nada disso acontece. O sonho dele é recorrente, é anual, na verdade é diário e sempre projetado para o próximo jogo, para a próxima conquista.
Já imaginou: ganhar uma semifinal de Libertadores na casa do adversário que o derrotou duas vezes na primeira fase, no fim do jogo e com um gol do goleiro?
Imaginou e viu o que imaginou se concretizar em Guadalajara.
Já pensou: o jogo de volta está duro, 0 a 0, pênalti para o adversário, e o goleiro que fez o gol na semana passada acha de pegar o pênalti, ainda por cima?
Pensou e vibrou com o pensamento em forma de defesa na semana seguinte, defesa que ressuscitou o time todo que partiu para massacrar o bom rival.
É claro que você sabe de quem se está falando aqui.
E pouco importa se você simpatiza ou não com ele, se você acha que ele é ou não tudo o que dele dizem, embora seja cada vez mais difícil contestá-lo pelo que faz com as mãos e com os pés.
O fato é que ele é hoje o único jogador brasileiro capaz de realizar todos os sonhos do torcedor do seu time. A tal ponto que o goleiro Rogério Ceni poderia ser personagem da literatura fantástica de um gênio como Gabriel García Márquez.
blogdojuca@uol.com.br


Texto Anterior: [+] Volta: Tinga joga e mira Libertadores
Próximo Texto: Muricy intima reservas após goleada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.