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Corredor de 5 anos vira herói e preocupa a Índia
Ex-favelado corre 65 km, ganha fama, atrai ativistas dos direitos humanos e gera debate sobre os limites do esporte
Filho de um pedinte e de uma doméstica, menino foi vendido por R$ 40 quando tinha 10 meses e tem saúde debilitada por treinamentos
GUILHERME ROSEGUINI
DA REPORTAGEM LOCAL
A biografia é arrebatadora.
Um garoto paupérrimo nascido
na favela, trocado pela própria
mãe por dinheiro, descobre em
uma das modalidades mais extenuantes do atletismo seu caminho para o estrelato.
Existe, porém, uma particularidade na história de Budhia
Singh. Um dado que fez sua vida ser revirada pela principal
entidade de direitos humanos
da Índia e agora causa celeuma
entre os governantes do país.
A explicação é simples: Budhia tem cinco anos.
Tudo começou no último dia
2 de maio, quando o menino
acabou flagrado pelas câmeras
da TV durante disputa de uma
prova de 65 km. Eventos assim
ganham a denominação de ultramaratonas. São procurados
por atletas experientes e, na
maioria das vezes, veteranos
que buscam testar os limites da
resistência física. Muitos não
chegam ao final do percurso.
Naquele dia, sob 37C, o garoto correu sem parar. Após sete horas, completou todo o itinerário. "É humanamente impossível, é loucura. Adultos
costumam completar provas
assim em quatro horas. Uma
criança não poderia pensar numa coisa dessas", diz Lauter
Nogueira, técnico brasileiro de
ultramaratonistas.
Não por acaso, o menino despertou curiosidade. "No dia seguinte, todos queriam saber
quem ele era. Virou herói nacional e passou a ser convidado
para provas de rua", explica
Soumygit Tettneiq, jornalista
do "Hindustan Times", um dos
principais diários da Índia.
Baseado em Bhubaneswar,
no Estado de Orissa, Tettneiq
descobriu que a nova menina-dos-olhos do país nascera justamente na cidade onde trabalhava. Foi, assim, um dos primeiros a esquadrinharem detalhes de sua trajetória sofrida.
Só que o caso surpreendeu
também a Comissão Nacional
de Direitos Humanos, órgão
respaldado pelas Nações Unidas. A entidade decidiu investigar a rotina do corredor precoce. Desejava saber se os treinos
para corridas não debilitavam a
saúde do menino. E também
abriu procedimento para averiguar a conduta do treinador e
tutor de Budhia, Biranchi Das.
Behera Mishra, um dos porta-vozes da comissão, informa
que os testes foram realizados
no mês passado, sob supervisão
do médico Sugata Kar. A conclusão: o ultramaratonista-mirim possui lesões nos pés, pressão alta e um quadro de estresse cardiológico incomum para a
idade. "Os resultados são preocupantes e foram encaminhados para o governo do Estado
de Orissa. Cabe a eles decidir se
Budhia deve seguir correndo
ou não", relata Mishra.
A decisão não é simples, pois
mexe com tradições do país e
encontra importantes focos de
resistência. "Soa estranho para
um brasileiro, mas, aqui na Índia, muitos atletas costumam
manifestar seus talentos ainda
na infância. Budhia é um fenômeno. Será que é correto impedi-lo de competir, de fazer o
que gosta?", indaga R. K. Kumea, repórter do "Press Trust
India", que acompanha os passos do garoto no atletismo.
Ele se refere a casos como o
de Parimarjan Negi, 13, que se
tornou nesta temporada grande-mestre -graduação máxima do xadrez. É o segundo mais
jovem da história a obter o feito. Ou a trajetórias como a do
atirador Rajyavardhan Rathore, prata na Olimpíada de Atenas-2004, que pratica a modalidade desde os cinco anos.
Jornalistas como Kumea e
Tettneiq, que já entrevistaram
Budhia diversas vezes, dizem
que o menino jamais reclamou
de cansaço. A Comissão Nacional de Direitos Humanos, por
outro lado, acredita que um garoto de cinco anos não pode definir sozinho seu futuro.
Budhia nasceu na favela Gautam Nagar. A mãe, Sukanti, trabalhava como doméstica. O pai
pedia esmolas nas ruas e carregava o filho nos braços para
sensibilizar os abordados.
Quando a criança completou
dez meses, Sukanti decidiu utilizá-la como mercadoria. Ela
acabara de perder o marido e
não tinha dinheiro para sustentar os três filhos -Budhia tem
duas irmãs. Decidiu, então,
vender o único homem.
Por uma quantia equivalente
a R$ 40, entregou seu filho ao
dono de uma papelaria. É neste
ponto que o técnico Biranchi
Das aparece na saga.
Ele é proprietário de uma
academia de judô nas cercanias
da favela. Biranchi conta que
Budhia estava sendo maltratado na nova morada. Decidiu,
então, comprá-lo para ensinar
os caminhos do esporte.
Sukanti ainda mantém contato com o filho, mas o técnico
assumiu as responsabilidades.
Biranchi explica que inicialmente encaminhou o pupilo
para a prática do judô.
Um dia, Budhia xingou um
colega. Como castigo, o treinador mandou-o trotar em volta
do ginásio. Esqueceu de mandá-lo parar. Três horas depois,
o menino ainda corria. Dali em
diante, passou a encorajá-lo na
prática de ultramaratonas.
Biranchi não é alvo de investigação apenas pelos danos que
pode causar à saúde do menino.
Ele negociou alguns contratos
de patrocínio. A comissão de
direitos humanos acredita que
se trata de exploração.
Tudo é negado pelo treinador. Ele diz que a bateria de testes físicos realizada em seu comandado é fraudulenta. Alega
que sua academia tem um médico particular, e ele foi proibido de acompanhar o procedimento ao qual Budhia foi submetido. Afirma ainda que o dinheiro dos incentivadores só
melhora a vida de seu "atleta".
Por enquanto, o governo de
Orissa não bateu o martelo sobre o tema. Apenas incitou organizadores de provas a não
convidarem Budhia para competir. A decisão sobre o futuro
do ultramaratonista está nas
mãos de R.N. Senapati, secretário estadual do departamento
de Saúde e Bem-Estar da Família. Por meio de sua assessoria,
ele informou que não há data
para sair a decisão final do caso.
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