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São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2003

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pan 2003

Segurança vira argumento para Santo Domingo ganhar "maquiagem" e esconder as mazelas sociais dos dominicanos

REALIDADE VIRTUAL

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Muro na região de Makiteria, uma das mais pobres de Santo Domingo, esconde favela que fica perto de atração turística


EDUARDO OHATA
GUILHERME ROSEGUINI
JOÃO CARLOS ASSUMPÇÃO
ENVIADOS ESPECIAIS A SANTO DOMINGO

Algo está estranho. Julio Martinez olha para os lados e não encontra os companheiros. Ali, no cruzamento das avenidas Máximo Gomez e 27 de Febrero, um dos mais movimentados de Santo Domingo, ele e sua trupe costumam lavar o vidro dos carros em busca de alguns trocados. "Sempre tem mais gente comigo aqui. Não sei para onde foi todo mundo", diz o garoto de 11 anos.
A resposta que Dominguez procura está bem próxima. A 50 metros dali, vestido com uma amarfanhada farda do exército, o soldado Nelsoh Louisa cuida da segurança de um dos portões que dão acesso ao Centro Olímpico, principal praça esportiva do Pan.
"Recebemos uma ordem para expulsar todas as crianças e os mendigos que estão próximos. Disseram que era por motivos de segurança", explicou o soldado.
Parece um caso isolado, mas não é. A mesma operação foi efetuada nos locais onde existem práticas de esportes e faz parte de um programa para criar uma "cidade virtual" durante os Jogos.
A pobreza de Santo Domingo recebeu uma maquiagem. Antes do início do Pan, centenas de crianças e mendigos aproveitavam o incremento de estrangeiros na cidade para pedir esmolas. O Centro Olímpico era o ponto que registrava maior aglutinação.
Logo no dia da cerimônia de abertura, realizada na última sexta, porém, todos desapareceram.
"Mandamos eles saírem de perto dos locais de competição porque acabam atrapalhando nosso trabalho. Esses pedintes e garotos são haitianos muito pobres. Não é bom tê-los aqui. Prejudica a imagem do Pan", disse o brigadeiro Jose Guerreiro, um dos responsáveis pela segurança do evento.
A culpa não pode ser toda depositada no vizinho Haiti. Na República Dominicana, de um total de 8,5 milhões de habitantes, 25% vivem abaixo da linha de pobreza -sobrevivem com menos de US$ 1 por dia. "Os organizadores dos Jogos escondem a realidade. A população aqui é miserável", afirmou o padre Rogelio Cruz.
O sacerdote é o responsável pelo movimento que mais tem dado dor de cabeça aos organizadores. Com um artefato batizado de "tocha da fome", Cruz percorre os bairros carentes da cidade, promove pequenos eventos esportivos e culturais e critica o governo pela realização do Pan.
Os policiais já reprimiram sua iniciativa. Dezenas de pessoas ficaram feridas por estarem participando das celebrações, e a tocha passou a circular só em cidades nas cercanias de Santo Domingo.
A preocupação em esconder as mazelas afetou até o trajeto dos ônibus que deixam a Vila Pan-Americana repletos de atletas. O caminho mais rápido até o Parque del Este, local onde oito modalidades são disputadas, passa pela região de Makiteria, uma das mais pobres de Santo Domingo.
Só que os veículos oficiais evitam esse percurso. Para escapar da favela, seguem outro trecho. A rota a ser percorrida, que inicialmente teria 22 km, chega a 25 km.
Questionado sobre a mudança do caminho, Ramirez disse que se tratava de questão de segurança.
A escamoteação da pobreza não está só ligada aos Jogos. Ao lado do museu, que conta a história da chegada de Cristovão Colombo, um grande muro parece separar dois mundos. De um lado está a suntuosa construção que atrai milhares de turistas todos os dias. Do outro, escondida, na mesma zona popular de Makiteria, a realidade que ninguém quer ver.


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