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MEMÓRIA
50 anos após tragédia da perda da Copa para o Uruguai, goleiro tido como culpado é sepultado em SP
Brasil assiste a 2º enterro de Barbosa
FÁBIO VICTOR
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
da Reportagem Local
Os inquisidores podem soltar os
seus foguetes.
Moacir Barbosa, escolhido como o grande culpado pela maior
tragédia da história do futebol
brasileiro, foi enterrado ontem,
pela segunda vez e definitivamente, no cemitério Morada da Grande Planície, na Praia Grande (SP).
O ex-goleiro da seleção brasileira morreu às 22h30 de anteontem,
aos 79 anos, na Santa Casa da
Praia Grande, por problemas decorrentes de um acidente vascular
cerebral sofrido na última quarta.
Barbosa era o goleiro do Brasil
em 16 de julho de 1950, quando a
seleção foi derrotada por 2 a 1 pelo
Uruguai no Maracanã na final da
única Copa disputada no país.
Foi um dos 11 brasileiros que falharam no segundo gol uruguaio,
marcado por Alcides Gigghia, aos
34min do segundo tempo, quando o atacante avançou pela ponta
direita, venceu Bigode e, surpreendendo a todos, que aguardavam um cruzamento, chutou
rasteiro, colocando a bola entre a
trave esquerda e a perna de Barbosa e emudecendo instantaneamente 200 mil pessoas.
Foi apenas mais um dos 11 acometidos pela soberba e pelo "salto
alto" que dominavam a seleção
naquela fatídica tarde.
Na fogueira de hereges que arde
há 50 anos, chegou a ter a companhia tímida de Bigode -taxado
de "afinão" por não ter revidado
um tapa de Obdulio Varela.
Mas, goleiro, negro e vivendo
num país sedento por heróis e bodes expiatórios, foi pinçado como
o maior responsável pelo "grande
horror" do esporte nacional -e
experimentou, vivo, seu primeiro
sepultamento.
Desde aquele dia, Barbosa nunca mais teve sossego e viu sua carreira, até ali brilhante, declinar.
No documentário "Futebol", de
João Moreira Salles, o ex-goleiro
conta que o maior desconsolo de
sua vida não foi propriamente o
gol de Gigghia, mas o comentário
de uma mulher que cruzou num
mercado, quase 20 anos depois do
lance. "Olha ali, filho", disse a senhora, apontando Barbosa para o
garoto que a acompanhava, "esse
homem aqui é que fez o Brasil interior chorar".
O estigma, porém, foi compartilhado até por seus colegas de profissão, mesmo muitos anos depois do ocorrido. Em setembro de
93, participando de um documentário da BBC, foi à Granja Comary, em Teresópolis, onde estava concentrada a seleção que dias
depois, pelas eliminatórias da Copa-94, enfrentaria o mesmo Uruguai, no mesmo Maracanã, decidindo uma vaga no Mundial.
A delegação brasileira o esnobou -o supersticioso Zagallo,
então coordenador-técnico, temia que o seu contato com os atletas trouxesse maus fluidos.
Foi nessa época que, cansado
das humilhações, Barbosa se refugiou na Praia Grande.
A cor de sua pele -foi o primeiro goleiro negro de sucesso na seleção-, num momento em que o
racismo no futebol não concluíra
sua transição do apartheid para a
cordialidade, foi outro fator decisivo para a sua crucificação.
Afinal, durante anos difundiu-se a ladainha de que os negros não
tinham estrutura psicológica para
suportar partidas decisivas.
Numa ironia histórica, Barbosa
morreu assistindo à consagração
de outro negro -o corintiano Dida- no gol da seleção.
Nascido em Campinas (SP), em
27 de março de 1921, Barbosa iniciou a carreira no clube paulista
do Comercial, de onde se transferiu para o Ypiranga.
A consagração, entretanto,
aconteceu no Vasco da Gama,
clube que defendeu de 1945 a 1955
e de 1958 a 1962.
Jogou ainda no Santa Cruz, no
Bonsucesso e no Campo Grande.
Abandonou a carreira profissional em 1963. Apesar das dificuldades financeiras que enfrentou na
velhice, foi, ironicamente, entre
70 e 72, secretário da Fundação de
Garantia ao Atleta Profissional,
no Rio. Aposentou-se como funcionário da Suderj (Superintendência de Desportos do Rio).
Após a morte de sua mulher,
Clotilde, vítima de câncer na medula, em 1997, Barbosa passou
por um período crítico. O apartamento em que morava foi vendido por um parente e ele morou
nos fundos da casa de um amigo.
Há cerca de dois anos, o Vasco
da Gama passou a auxiliar o ex-goleiro, enviando-lhe mensalmente R$ 2.000, dinheiro com o
qual alugava um apartamento no
bairro de Cidade Ocian.
Barbosa viveu seus últimos anos
sozinho. Não tinha contato com
os poucos parentes. Após a morte
da mulher, passou a ter a assistência de uma vizinha, a comerciante
Teresa Borba, 40.
"Ele até já chorou no meu ombro. Até o fim da vida, sempre dizia: "Eu sei que não sou culpado.
Éramos 11'", contou Teresa.
Para desespero dos inquisidores, mesmo sepultado duas vezes,
Barbosa, segundo Nelson Rodrigues, o cronista definitivo do futebol brasileiro e grande admirador
do goleiro vascaíno, jamais poderá morrer.
Em artigo publicado na "Manchete Esportiva" de 30 de maio de
1959, o dramaturgo escreveu:
"Ora, eu comecei a desconfiar
da eternidade de Barbosa quando
ele sobreviveu a 50. Então, concluí
de mim para mim: esse camarada
não morre mais! Não morreu, e,
pelo contrário: está cada vez mais
vivo."
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