São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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MEMÓRIA
50 anos após tragédia da perda da Copa para o Uruguai, goleiro tido como culpado é sepultado em SP
Brasil assiste a 2º enterro de Barbosa

FÁBIO VICTOR
JOSÉ ALBERTO BOMBIG
da Reportagem Local

Os inquisidores podem soltar os seus foguetes.
Moacir Barbosa, escolhido como o grande culpado pela maior tragédia da história do futebol brasileiro, foi enterrado ontem, pela segunda vez e definitivamente, no cemitério Morada da Grande Planície, na Praia Grande (SP).
O ex-goleiro da seleção brasileira morreu às 22h30 de anteontem, aos 79 anos, na Santa Casa da Praia Grande, por problemas decorrentes de um acidente vascular cerebral sofrido na última quarta.
Barbosa era o goleiro do Brasil em 16 de julho de 1950, quando a seleção foi derrotada por 2 a 1 pelo Uruguai no Maracanã na final da única Copa disputada no país.
Foi um dos 11 brasileiros que falharam no segundo gol uruguaio, marcado por Alcides Gigghia, aos 34min do segundo tempo, quando o atacante avançou pela ponta direita, venceu Bigode e, surpreendendo a todos, que aguardavam um cruzamento, chutou rasteiro, colocando a bola entre a trave esquerda e a perna de Barbosa e emudecendo instantaneamente 200 mil pessoas.
Foi apenas mais um dos 11 acometidos pela soberba e pelo "salto alto" que dominavam a seleção naquela fatídica tarde.
Na fogueira de hereges que arde há 50 anos, chegou a ter a companhia tímida de Bigode -taxado de "afinão" por não ter revidado um tapa de Obdulio Varela.
Mas, goleiro, negro e vivendo num país sedento por heróis e bodes expiatórios, foi pinçado como o maior responsável pelo "grande horror" do esporte nacional -e experimentou, vivo, seu primeiro sepultamento.
Desde aquele dia, Barbosa nunca mais teve sossego e viu sua carreira, até ali brilhante, declinar.
No documentário "Futebol", de João Moreira Salles, o ex-goleiro conta que o maior desconsolo de sua vida não foi propriamente o gol de Gigghia, mas o comentário de uma mulher que cruzou num mercado, quase 20 anos depois do lance. "Olha ali, filho", disse a senhora, apontando Barbosa para o garoto que a acompanhava, "esse homem aqui é que fez o Brasil interior chorar".
O estigma, porém, foi compartilhado até por seus colegas de profissão, mesmo muitos anos depois do ocorrido. Em setembro de 93, participando de um documentário da BBC, foi à Granja Comary, em Teresópolis, onde estava concentrada a seleção que dias depois, pelas eliminatórias da Copa-94, enfrentaria o mesmo Uruguai, no mesmo Maracanã, decidindo uma vaga no Mundial.
A delegação brasileira o esnobou -o supersticioso Zagallo, então coordenador-técnico, temia que o seu contato com os atletas trouxesse maus fluidos.
Foi nessa época que, cansado das humilhações, Barbosa se refugiou na Praia Grande.
A cor de sua pele -foi o primeiro goleiro negro de sucesso na seleção-, num momento em que o racismo no futebol não concluíra sua transição do apartheid para a cordialidade, foi outro fator decisivo para a sua crucificação.
Afinal, durante anos difundiu-se a ladainha de que os negros não tinham estrutura psicológica para suportar partidas decisivas.
Numa ironia histórica, Barbosa morreu assistindo à consagração de outro negro -o corintiano Dida- no gol da seleção.
Nascido em Campinas (SP), em 27 de março de 1921, Barbosa iniciou a carreira no clube paulista do Comercial, de onde se transferiu para o Ypiranga.
A consagração, entretanto, aconteceu no Vasco da Gama, clube que defendeu de 1945 a 1955 e de 1958 a 1962.
Jogou ainda no Santa Cruz, no Bonsucesso e no Campo Grande.
Abandonou a carreira profissional em 1963. Apesar das dificuldades financeiras que enfrentou na velhice, foi, ironicamente, entre 70 e 72, secretário da Fundação de Garantia ao Atleta Profissional, no Rio. Aposentou-se como funcionário da Suderj (Superintendência de Desportos do Rio).
Após a morte de sua mulher, Clotilde, vítima de câncer na medula, em 1997, Barbosa passou por um período crítico. O apartamento em que morava foi vendido por um parente e ele morou nos fundos da casa de um amigo.
Há cerca de dois anos, o Vasco da Gama passou a auxiliar o ex-goleiro, enviando-lhe mensalmente R$ 2.000, dinheiro com o qual alugava um apartamento no bairro de Cidade Ocian.
Barbosa viveu seus últimos anos sozinho. Não tinha contato com os poucos parentes. Após a morte da mulher, passou a ter a assistência de uma vizinha, a comerciante Teresa Borba, 40.
"Ele até já chorou no meu ombro. Até o fim da vida, sempre dizia: "Eu sei que não sou culpado. Éramos 11'", contou Teresa.
Para desespero dos inquisidores, mesmo sepultado duas vezes, Barbosa, segundo Nelson Rodrigues, o cronista definitivo do futebol brasileiro e grande admirador do goleiro vascaíno, jamais poderá morrer.
Em artigo publicado na "Manchete Esportiva" de 30 de maio de 1959, o dramaturgo escreveu:
"Ora, eu comecei a desconfiar da eternidade de Barbosa quando ele sobreviveu a 50. Então, concluí de mim para mim: esse camarada não morre mais! Não morreu, e, pelo contrário: está cada vez mais vivo."


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