São Paulo, sexta-feira, 09 de julho de 2010

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UM MUNDO QUE TORCE
Aventuras, roubadas, histórias, erros e acertos numa viagem pelos países da Copa

Torcendo contra

Não reconhecido como país, Kosovo seca a Sérvia enquanto tenta montar uma "seleção"

FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A PRISTINA

Mehmet Kurda, 44, veste um agasalho preto e, sentado nas capengas arquibancadas de ferro do clube Flamurtari, exalta-se com a pergunta que acaba de ouvir.
"É muito mais do que uma questão de torcida. Passamos uma década sendo massacrados. É por causa deles que estamos assim, nesta situação", diz, irritado, para então entrar num discurso emotivo, quase às lágrimas.
"Essas crianças merecem poder jogar com outras crianças do mundo. Mas não podem. E não podem porque estão isoladas por causa de toda essa questão política."
Kurda é professor de futebol. No campo à sua frente, ocorre uma peneira de garotos menores de 15 anos. São 144, e só 32 serão selecionados. O objetivo é que representem a seleção do Kosovo. Se um dia ela vier a existir.
A 28ª parada da série "Um Mundo Que Torce" é em Pristina. Capital do Estado kosovar, como defendem a população local e 69 países.
Um pedaço do planeta em disputa, mas ainda formalmente sérvio, na opinião de 64% dos integrantes da ONU, entre eles o Brasil. Visão compartilhada pela Fifa.
"Bem-vindo ao Kosovo", afirma o agente da imigração, após uma rápida passada de olhos no passaporte.
A cidade está em polvorosa. "Você veio de Londres? Ele veio no seu voo?", pergunta o taxista. "Ele" é Tony Blair, tido como herói na região por seu trabalho no apaziguamento da guerra nos Balcãs, no fim dos anos 90.
Pelas avenidas de Pristina, bandeiras britânicas. Diante do Teatro Nacional, crianças ensaiam o coral que será apresentado hoje para o ex- -primeiro-ministro. Que não, não estava no mesmo voo.
A cidade não festejava tanto desde 23 de junho.
Naquela noite, a Sérvia perdeu para a Austrália por 2 a 1 e foi eliminada da Copa.
"A gente sempre torce contra a Sérvia. Se os sérvios jogarem contra o time do demônio, torcemos pelo demônio", afirma o comerciante Blekim Secmahi, 40, que também assiste aos candidatos a ídolos de sua seleção.
O caminho deve ser longo. A Folha conversou com o presidente da federação e o técnico da seleção kosovar. E nenhum dos dois é otimista.
"Enquanto não houver uma definição em Haia [a Corte Internacional analisa a questão da independência], nem a Fifa nem a Uefa vão nos reconhecer", diz Fadil Vokrri, 50, o cartola, ex-atacante da seleção iugoslava.
A federação funciona num prédio de Pristina que reúne todas as entidades esportivas locais. São duas salas, oito funcionários. O orçamento anual é de R$ 400 mil.
"Com a guerra nos anos 90, perdemos duas gerações de jogadores. A ideia, aqui, é começar a formar um time para daqui a alguns anos", declara Albert Bunjaki, 38.
Na sua planilha, os nomes dos 144 garotos e um código: "0" significa bom jogador, "1", garoto com capacidade de jogar na liga local e "2", potencial para a seleção.
Alheios à política, pelo menos naquele momento, 22 moleques dão de tudo para impressionar o treinador.
Se a política deixar, um "2" pode ser o começo de uma nova vida, de um caminho para uma Copa do Mundo. Quando não precisarão mais torcer contra os outros, quem quer que eles sejam.
Se a política deixar.


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