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UM MUNDO QUE TORCE Aventuras, roubadas, histórias, erros e acertos numa viagem pelos países da Copa
Torcendo contra
Não reconhecido como
país, Kosovo seca a
Sérvia enquanto tenta
montar uma "seleção"
FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A PRISTINA
Mehmet Kurda, 44, veste
um agasalho preto e, sentado
nas capengas arquibancadas
de ferro do clube Flamurtari,
exalta-se com a pergunta que
acaba de ouvir.
"É muito mais do que uma
questão de torcida. Passamos uma década sendo massacrados. É por causa deles
que estamos assim, nesta situação", diz, irritado, para
então entrar num discurso
emotivo, quase às lágrimas.
"Essas crianças merecem
poder jogar com outras crianças do mundo. Mas não podem. E não podem porque estão isoladas por causa de toda essa questão política."
Kurda é professor de futebol. No campo à sua frente,
ocorre uma peneira de garotos menores de 15 anos. São
144, e só 32 serão selecionados. O objetivo é que representem a seleção do Kosovo.
Se um dia ela vier a existir.
A 28ª parada da série "Um
Mundo Que Torce" é em Pristina. Capital do Estado kosovar, como defendem a população local e 69 países.
Um pedaço do planeta em
disputa, mas ainda formalmente sérvio, na opinião de
64% dos integrantes da
ONU, entre eles o Brasil. Visão compartilhada pela Fifa.
"Bem-vindo ao Kosovo",
afirma o agente da imigração, após uma rápida passada de olhos no passaporte.
A cidade está em polvorosa. "Você veio de Londres?
Ele veio no seu voo?", pergunta o taxista. "Ele" é Tony
Blair, tido como herói na região por seu trabalho no apaziguamento da guerra nos
Balcãs, no fim dos anos 90.
Pelas avenidas de Pristina,
bandeiras britânicas. Diante
do Teatro Nacional, crianças
ensaiam o coral que será
apresentado hoje para o ex-
-primeiro-ministro. Que não,
não estava no mesmo voo.
A cidade não festejava tanto desde 23 de junho.
Naquela noite, a Sérvia
perdeu para a Austrália por 2
a 1 e foi eliminada da Copa.
"A gente sempre torce contra a Sérvia. Se os sérvios jogarem contra o time do demônio, torcemos pelo demônio", afirma o comerciante
Blekim Secmahi, 40, que
também assiste aos candidatos a ídolos de sua seleção.
O caminho deve ser longo.
A Folha conversou com o
presidente da federação e o
técnico da seleção kosovar. E
nenhum dos dois é otimista.
"Enquanto não houver
uma definição em Haia [a
Corte Internacional analisa a
questão da independência],
nem a Fifa nem a Uefa vão
nos reconhecer", diz Fadil
Vokrri, 50, o cartola, ex-atacante da seleção iugoslava.
A federação funciona num
prédio de Pristina que reúne
todas as entidades esportivas
locais. São duas salas, oito
funcionários. O orçamento
anual é de R$ 400 mil.
"Com a guerra nos anos
90, perdemos duas gerações
de jogadores. A ideia, aqui, é
começar a formar um time
para daqui a alguns anos",
declara Albert Bunjaki, 38.
Na sua planilha, os nomes
dos 144 garotos e um código:
"0" significa bom jogador,
"1", garoto com capacidade
de jogar na liga local e "2",
potencial para a seleção.
Alheios à política, pelo
menos naquele momento, 22
moleques dão de tudo para
impressionar o treinador.
Se a política deixar, um "2"
pode ser o começo de uma
nova vida, de um caminho
para uma Copa do Mundo.
Quando não precisarão mais
torcer contra os outros, quem
quer que eles sejam.
Se a política deixar.
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