São Paulo, sábado, 10 de junho de 2006

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Visão de jogo

Com locução, Fifa abre Copa para deficiente visual

Entidade cria espaço especial para cegos em todos os jogos, que experimentam o prazer de voltar ao estádio

GUILHERME ROSEGUINI
ENVIADO ESPECIAL A MUNIQUE

Jürgen Meck não conseguiu dormir à noite. Durante o café da manhã, avisou a filha que estava nervoso. Queria chegar cedo ao palco da abertura.
Temia que algum contratempo o impedisse de acompanhar pela primeira vez um jogo de futebol no estádio. Às 15h30, duas horas e meia antes de a Alemanha enfrentar a Costa Rica, ele encontrou seu assento de número 18 no bloco 126 das arquibancadas.
Não fazia idéia de que, naquele momento, se tornava o primeiro de um grupo de dez deficientes visuais a entrar para a história do esporte. No Mundial alemão, a Fifa colocou à venda ingressos destinados a cegos e disponibilizou serviços especiais para os mesmos, um fato inédito. São 640 entradas no total, dez por duelo.
"Eu fui um bom atacante na juventude, mas tenho uma doença degenerativa na visão e, aos 16 anos, já não conseguia mais jogar. Freqüentar um estádio é algo com que sempre sonhei. E agora estou na Copa", festeja Meck, 58, aposentado. Ele pagou o equivalente a R$ 124 pelo ingresso.
A entidade que comanda o futebol deu fones de ouvido conectados a um transmissor a cada deficiente. Todos puderam escutar a narração da partida, a cargo de voluntários.
Marko Schlichting não sabia que teria tal tecnologia à disposição. "É um belo presente de aniversário", declara o jornalista, que fez ontem 48 anos.
Schlichting nasceu cego e costuma seguir jogos da seleção alemã pela TV. Mas desejava saber o que de tão especial havia em um estádio. Sua resposta veio logo aos 6min, quando Philipp Lahm marcou o primeiro gol alemão.
"Gritar e sentir aquela atmosfera de alegria é algo inexplicável. Parece que todas as pessoas são uma só. Incrível."
Ao seu lado, Wehi Renham também parecia não acreditar na situação. Queria mais. Logo após o tento que abriu o marcador, o cego puxou o coro: "Einer geht noch, einen geht noch rein" (algo como "podemos marcar mais um"). Ele veio de Dortmund (610 km de Munique) para acompanhar o duelo.
No intervalo, ligou eufórico para a mulher, Angela e analisou a partida. "Estamos ganhando, mas a defesa não está bem. Vai ser um segundo tempo complicado", explicou.
Muito de sua observação veio das palavras que Jochen Stutzky e Martin Sedlacek sopravam em seus ouvidos. Ambos atuaram como narradores ontem. Desde 2005, cumprem a função nos jogos do Bayern.
"A diferença é que no Campeonato Nacional conhecemos todo mundo. Agora está difícil. Não sei o nome de ninguém da Costa Rica", afirma Stutzky.
Mesmo assim, ambos saíram cobertos de elogios, especialmente do escritor Allan Tachnakian, um cego já experiente em acompanhar jogos in loco.
Tachnakian vive em Paris e é torcedor do Lyon. Sempre que pode, vai ao estádio. "Perdi a visão aos 12 anos, mas não o gosto por futebol. Só que, lá na França, nunca ofereceram esse serviço de narração. Quando soube que seria inaugurado na Copa, corri atrás de ingresso. É uma revolução para mim."
Ele escreveu uma carta a Franz Beckenbauer, presidente do comitê do Mundial. Pretende entregá-la ao "Kaiser" hoje, antes de voltar a Paris.
Ao ser questionado sobre a diferença entre acompanhar um jogo na TV ou no campo, Tachnakian propõe um desafio ao repórter da Folha. "Pegue um fone com os narradores, vede os olhos e sente conosco. Só assim você vai entender."
Proposta aceita. Escuridão. O locutor começa a descrever um ataque da Alemanha. Tachnakian avisa: "Preste atenção na vibração do chão. Sempre que há um lance de perigo, as pessoas ficam tensas, esbarram umas nas outras, batem o pé. É sinal de algo pode ocorrer".
Logo após sua interpelação, o público se levanta e solta um inconfundível grito de "Uh!". Pelos fones, o narrador explica que o atacante Podolski estava próximo ao gol da Costa Rica, mas chutou para o alto, longe.
"Com o tempo, você começa a antever as jogadas pelos gritos, pelas reações do público, pelo ambiente. A TV ou o rádio nunca conseguirão nada igual."


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