São Paulo, sábado, 11 de abril de 2009

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JOSÉ GERALDO COUTO

O estranho ímpar


A atitude inesperada de Adriano desconcerta o modelo hegemônico de sucesso, não só no mundo da bola


É MUITO FÁCIL falar de Adriano. É muito difícil falar de Adriano. É impossível não falar de Adriano.
O difícil é falar de Adriano sem cair no moralismo, no sentimentalismo ou na psicanálise de botequim. Seu caso é daqueles que criam uma situação inédita, desconcertando o mundo do futebol, e não apenas ele. Uma perplexidade comparável à gerada pelo craque Leandro em 1986, quando, às vésperas da Copa do Mundo do México, recusou-se, por motivos pessoais, a embarcar com a seleção brasileira. Agora é Adriano que surpreende a boleirada, os torcedores e a mídia mundial, rejeitando os milhões de euros da Inter de Milão para ficar de bermuda e chinelo empinando pipa na Vila Cruzeiro. Pululam as explicações fáceis, as respostas automáticas: é dor de corno, depressão, muita droga, birita, falta de estrutura, burrice pura e simples. Seja qual for a explicação mais convincente, Adriano criou um fato.
Tomou uma atitude inesperada num mundo de reações tão programadas e previsíveis. Foi na contramão da corrente hegemônica, desafinou o coro dos contentes. Seu gesto inquieta e perturba porque, na sua aparente irracionalidade, nos faz questionar a lógica absurda que comanda nossas vidas.
O leitor que acompanha ou suporta esta coluna sabe o quanto valorizo o lance que destoa: a furada, o frango, o erro. Deslizes que iluminam, que sobressaltam, que acordam. João Cabral de Melo Neto dizia que, em sua poesia, evitava "embalar" o leitor numa música que o fizesse deslizar como quem roda por uma estrada bem asfaltada. Preferia construir um caminho de pedras que, com seus solavancos, levasse o leitor a despertar.
Mal comparando, uma atitude como a de Adriano equivale a uma canelada, um tropeção, uma pedra com que se topa no meio do caminho. Quem quiser que se defenda do susto respondendo com as frases feitas citadas lá em cima. E quem tiver coragem que encare o Adriano que traz dentro de si.
Uma das situações mais tocantes retratadas no documentário "Fiel", que entrou em cartaz anteontem em São Paulo, é a da torcedora corintiana que, casada com um palmeirense, acompanha a última rodada do Brasileirão de 2007 ao lado do marido, no Parque Antarctica. Em meio a 20 mil eufóricos palestrinos, ela vive em silêncio o drama de seu time, com o radinho no ouvido. Enquanto o Palmeiras vencia em seu estádio, o Corinthians era rebaixado diante do Grêmio, em Porto Alegre.
Essa solidão irredutível e incomunicável me fez lembrar duas coisas. Uma é a definição lapidar de Millôr Fernandes: "Democracia é o sagrado direito de torcer pelo Vasco no meio da arquibancada do Flamengo". A outra é um poema de Carlos Drummond de Andrade que diz que todas as festas são iguais, todas as reuniões, todos os velórios, todos os partidos, os clubes, as passeatas. Tudo, enfim, é igual, menos os homens, pois "todo ser humano é um estranho ímpar". Adriano, com sua recusa, afirma- -se como estranho ímpar. Diante dele, o melhor a fazer é ouvir Itamar Assumpção: "Vá cuidar da sua vida,/ diz o dito popular./ Quem cuida da vida alheia/ da sua não pode cuidar".

jgcouto@uol.com.br


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