São Paulo, sexta-feira, 11 de junho de 2004

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FUTEBOL

Faltam gays no futebol

MÁRIO MAGALHÃES
COLUNISTA DA FOLHA

Ia animada a festa, o que parecia incrível depois de um dia em que a chuva desabara como em páginas célebres do realismo fantástico. A estiagem só viera quando a noite caíra. A pista de dança fervilhava com guris e gurias que davam de ombros, livres dos casacos desencaixotados no outono, para o frio que intimidava lá fora. Passava da meia-noite quando o DJ sacou o "indriblável" clássico da disco music: "YMCA", do Village People.
Como há mais de duas décadas acontece, não deu outra: machões empedernidos cantaram a valer uma das letras mais gays que o pop já produziu. Sempre achei engraçado. Alguns durões talvez fiquem sem jeito ao saber que celebram a agremiação onde "os rapazes podem fazer reais os seus sonhos". A maioria não está nem aí. Faz bem.
Lembrei-me do Orange Bowl, em Miami, arena dos embates iniciais do Brasil na Olimpíada de 96. A animação eletrizante corria paralela ao futebol. Antes, no intervalo e depois dos jogos, uma loira bacana escalava uma seleção musical capaz de fazer até o Romário se mexer. A gringa abria com Beatles, "Twist and Shout". Aí atacava de "YMCA", a sigla em inglês da Associação Cristã de Moços. A torcida bailava como num club. Núcleos GLS estimulavam os renitentes.
Nossos estádios andam chochos, com exceção do Morumbi e poucos outros. Borderôs raquíticos minam êxtases próprios a concentrações de massa. Boa parte das organizadas só empolga seus seguidores. Missa para convertido. Pela época em que o Village People estourava com outro hit, "Macho Man", um pessoal corajoso saiu do armário e ensaiou a formação de torcidas. Em Porto Alegre, gremistas agruparam-se na Coligay. Rubro-negros lançaram a Flagay. Num ambiente homofóbico, mentalidades cinzentas intimidaram os moços que queriam colorir as arquibancadas. Foram postos para correr.
O machismo sufoca o futebol. Impensável um boleiro abrir o jogo como fez um grandalhão do vôlei. Suspeitas de amor entre iguais levam reacionários a cortar lenha para imolar corações nas fogueiras da intolerância.
Até revolucionários do futebol revelam-se patrulheiros do desejo. "Como colocar dois homens [homossexuais] num quarto para concentrar?", perguntou Telê, anos atrás. "É como se fizesse um futebol misto e pusessem um homem e uma mulher dentro do quarto. Não dá."
Árbitros destacaram-se entre os mais bem resolvidos. "Sou gay, não me importo com meu apelido de Bianca, mas nunca transei em campo nem cantei jogador", disse certa vez Válter Senra. Jorge Emiliano, o saudoso Margarida, emendou: "Prefiro que se lembrem de mim como um juiz bicha do que como um juiz desonesto".
Os gays trariam mais alegria aos nossos campos cabisbaixos. E também bom humor. Como o de Margarida, ao se referir a sete árbitros do Rio suspeitos de fabricar resultados: "Pobre da Branca de Neve. Dos sete anões, só três iriam querer comê-la".

Dores de amor
Ao cruzmaltino passional e enamorado, a morena estonteante mentiu que balançava pelo Vasco. Mas seu coração, generoso, batia por outro. Assim compuseram, em "Gol Anulado", Aldir Blanc e João Bosco: "Quando você gritou Mengo, no segundo gol do Zico, tirei sem pensar o cinto e bati até cansar". Versos cruéis a amalgamar dores de amor e futebol. Nesse campo, o das paixões, haverá criação mais bela que o golaço do tricolor Chico Buarque em "Biscate"? Inesquecível: "Vives na gandaia e queres que eu te respeite; quem te mandou tomar conhaque com o tíquete que eu te dei pro leite? Quieta, que eu quero ouvir Flamengo e River Plate". Para todas as torcidas, feliz Dia dos Namorados.

E-mail: mario.magalhaes@uol.com.br


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