São Paulo, sábado, 12 de junho de 2010

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A Copa da África branca

Negros eram minoria entre a torcida sul-africana que ocupou o estádio Soccer City na estreia dos anfitriões

Fotos Fábio Seixas/Folhapress
Torcedores no Soccer City, na partida entre África do Sul e México

FÁBIO SEIXAS
ENVIADO ESPECIAL A JOHANNESBURGO

Eram 15h51 em Johannesburgo, 10h51 em Brasília, quando Joseph Blatter estufou os pulmões para concretizar antiga obsessão da sua Fifa e proclamar que "a Copa do Mundo está na África".
Na África branca, no caso.
Porque, na abertura do 19º Mundial de futebol, a África negra ficou fora do Soccer City. Ou dentro, mas de costas para o jogo, trabalhando.
Torcedores brancos da África do Sul eram a grande maioria ontem no estádio que recebeu o empate da seleção anfitriã contra o México. Um chocante contraste com o que se via nas ruas, desde cedo. Com o que se vê pelo país, desde sempre.
O futebol é o esporte favorito dos negros sul-africanos. Mas, com ingressos caros, na média dos R$ 140 para o público local, quem ocupou para valer os assentos no estádio foram os brancos, com maior poder aquisitivo, aficionados históricos do rúgbi.
"Só pode ser por causa do preço, não pode haver outra razão", disse à Folha David Everatt, que levou ao jogo a mulher, Kathy, e os filhos John e Josie, adolescentes.
David vestia camisa de rúgbi, como vários dos seus compatriotas no Soccer City. Pelo estádio, havia também algumas faixas com o desenho do antílope, marca da seleção "Springbok", irmã mais bem-sucedida dos Bafana Bafana.
"Confesso que ainda estou aprendendo a torcer no futebol. A geração do meu filho já acompanha, mas a minha só via rúgbi. O futebol era o esporte dos negros. Hoje, um esporte está invadindo o território do outro, e isso é muito bom para as pessoas." David, de fato, não exibia intimidade com seu mais novo esporte, não mostrava a menor malemolência boleira.
"Meu coração parou", lançou, após o primeiro ataque dos Bafana, aos 25min de jogo. "Obrigado", soltou com toda a calma do mundo, quando um mexicano se atrapalhou num lance e jogou a bola para a lateral.
David ria, sem saber o que se passava quando os torcedores adversários gritavam "puto!" a cada vez que o goleiro sul-africano batia um tiro de meta.
(Entre eles, os dois irmãos mexicanos de León, no Estado de Guanajuato, que na entrada do Soccer City venderam um ingresso para a reportagem por US$ 300. Não eram cambistas: pagaram US$ 450, mas o amigo resolveu ficar em casa.)
A menos de um metro de David, sentados no corredor, dois negros, voluntários da organização, se desesperavam a cada ataque do México. Levantavam e pulavam e suspiravam seus "uhhhhs" a cada chance dos seus ídolos.
Fim de jogo, e apesar de os Bafana terem cedido o empate, Johannesburgo caiu em festa. O que importava era não ter perdido. Com o foco fora do estádio, novamente nas ruas, os negros voltaram ao protagonismo.
E foi um negro de 15 anos quem melhor definiu o sentimento de exclusão, o "tão perto e tão longe" que experimentou ontem. Bulenani passou o jogo todo a poucos metros do Soccer City acompanhado dos amigos Mpho, Lesego e Victor.
"Não foi ayoba", disse, na gíria negra para "legal".
"Ayoba 2010!" foi um dos slogans usados pela Fifa para divulgar sua Copa do Mundo no país anfitrião. Que talvez muitos brancos não tenham compreendido.


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