São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004

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NATAÇÃO

Atletas deixam Gaza e piscina mal acabada para vencer preconceito e fazer história

Palestinos percorrem caminho até a Grécia entre pedras, tiros e cloro

ADALBERTO LEISTER FILHO
GUILHERME ROSEGUINI
DOS ENVIADOS A ATENAS

O sonho olímpico foi acalentado dentro de uma piscina mal acabada, coberta por uma extensa lona de náilon, infestada de cloro e sem ventilação.
Raad Aweisat viu seu pai gastar todas as economias na construção do seu centro de treinamento particular, incrustado no quintal da casa onde vive, três degraus abaixo da portinhola da garagem.
"É horrível. Fica frio no inverno e abafado no verão", conta.
Ontem, ele lembrou dos momentos da preparação e das tantas vezes em que cogitou desistir ao ver a bandeira da Palestina ser hasteada na Vila Olímpica.
A partir da próxima terça-feira, Aweisat, 17, irá colocar seu nome na história: será o primeiro palestino a disputar provas olímpicas na natação. Vai competir nos 100 m borboleta.
E não está sozinho. Nem foi o único que sofreu. Ao seu lado, os outros dois representantes do país em Atenas narraram à Folha como adicionaram a expressão "atleta olímpico" ao currículo.
Numa região onde o conflito com Israel e os constantes atentados roubam a cena, sobra pouco tempo para o esporte.
A Palestina só conseguiu fundar seu comitê olímpico em 1993. Chegou aos Jogos pela primeira vez em Atlanta-1996 e nunca enviou mais do que cinco atletas para uma edição do evento.
"Não há dinheiro. Conseguimos ajuda de empresários, mas é muito pouco", relata Ibrahim Al Tawed, dirigente do país.
Os três atletas que conseguiram chegar à Grécia contaram também com o respaldo do Comitê Olímpico Internacional.
A entidade bancou uma pré-temporada de 45 dias para todos em ilhas gregas. Abdalsal Aldabaji, assim, pôde treinar sem medo.
Ele mora em Gaza e não tem pista para praticar. Corre na rua, inquieto com a sensação de que pode ser alvejado pela guarda de Israel a qualquer momento.
"Alguns amigos meus morreram quando estavam treinando. Vivo em uma prisão", afirma.
Ele vai disputar os 800 m mas, mesmo antes de competir, já ganhou um prêmio.
Um representante da organização deu-lhe um frasco contendo o óleo que os atletas utilizavam nos Jogos da Antigüidade.
"Estou muito feliz com essa recepção. Tenho certeza de que o esporte pode ajudar a promover a paz", conta ele, que tem 25 anos.
Aldabaji até hoje escapou ileso. Mas sua companheira de modalidade, Sanaa Abu Bkheet, não teve a mesma sorte. Ela acabou levando uma pedrada porque estava correndo de short e camiseta. Explicação: as mulheres do país seguem o Islã e costumam cobrir todo o corpo com uma vestimenta tradicional.
Nem assim ela desistiu.
"Eu nunca aceitei calada os preconceitos. O esporte é o caminho que encontrei para mostrar minha revolta", conta.
Seu objetivo na Olimpíada é simples. A atleta quer mostrar que tem talento e atrair a atenção de alguma universidade que a presenteie uma bolsa de estudo.
Mas seus tempos não a colocam entre as finalistas. Longe disso. A melhor marca que obteve nos 800 m é tecnicamente medíocre -2min28s, mais de 30 segundos acima do recorde mundial-, mas empolga a torcida do país.
Um punhado de parentes e conterrâneos fez questão de prestigiar Sanaa e os outros esportistas palestinos na cerimônia de ontem. Usavam uma faixa sobre os ombros, que continha as cores da bandeira -preto, vermelho, verde e branco- e uma imagem do presidente da Autoridade Nacional Palestina, Iasser Arafat.
"Hoje todo mundo quer ver a gente porque nosso país está em guerra. Na próxima Olimpíada, não quero que seja assim. Quero que me procurem porque vou ganhar uma medalha", afirma o nadador Aweisat, que amanhã participa do desfile de abertura.


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