São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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JOSÉ ROBERTO TORERO

Entre a masturbação e a suruba

Ontem, quando chegava ao meu prédio, acabei flagrando meu porteiro praticando um prazer solitário...

QUIROMANÍACO leitor, quiroprática leitora, aquele que nunca teve prazeres solitários que levante a mão. Se ela não estiver ocupada, é claro. Sim, erga a mão aquele que nunca lembrou de uma piada e riu sozinho, ou então aquele que jamais fugiu do trabalho para ir ao cinema no meio da tarde, sem ninguém por perto.
Eu, por exemplo (mau exemplo, é verdade), quando trabalhava como assistente da Secretaria de Redação desta nobre Folha, 18 anos atrás, um dia saí no meio da tarde e fui ver um filme sozinho num cinema.
Foi uma tarde das mais agradáveis. E por sorte eu era tão incompetente que nem notaram a ausência. Mas voltemos ao tema. Ontem à noite, quando chegava ao meu prédio, flagrei meu porteiro, possuidor da rara alcunha de Zé, praticando um prazer solitário. Ele estava num canto, na penumbra, segurando algo que eu não podia ver direito. Seu rosto mostrava uma felicidade quase infantil, como se ele estivesse fazendo algo proibido e divertido ao mesmo tempo. Cheguei mais perto e vi que o motivo de sua alegria estava em suas mãos.
Ele o manipulava com carinho. Era um radinho de pilha. Zé ouvia o jogo entre Lanús e Corinthians. Estava ausente do mundo e concentrado em seu aparelho.
Seus olhos estavam abertos, mas não viam o que olhavam. E eis aí um dos grandes prazeres solitários da humanidade: escutar um jogo de futebol no rádio.
Lembro até hoje de minha primeira vez. Foi no carro de meu pai. Um Corcel. O aparelho devia ser um Motoradio. O narrador certamente era o Fiori Gigliotti. Gostei tanto de Fiori que daquele dia em diante passei a começar a narração de meus jogos de botão como ele: "Abrem-se as cortinas, começa o espetáculo!". E no finalzinho eu mandava um "Crepúsculo de jogo, torcida brasileira".
Depois, passei a prestar atenção em José Silvério com suas paroxítonas alongadas ("Pra foooora!"), uma narração cheia de ação e emoção. E por fim fui ouvir Osmar Santos, que trouxe uma inédita dose de humor e criatividade para as narrações ("Ripa na chulipa", "Pimba na gorduchinha", "Não cochila, não cochila que o cachimbo cai!").
Com estes narradores, eu assistia aos jogos pelos ouvidos. A cada instante o gol poderia sair, todo passe lateral era perigoso e qualquer chute não entrava no gol "por pouco, muito pouco, muito pouco mesmo".
Lembro do susto ao descobrir que a transmissão começava uma hora antes do jogo. Quantos comentários eu não tinha perdido! Passei a ir mais cedo para o carro de meu pai. Ele me olhava com certa desconfiança quando eu pedia a chave do Corcel, talvez pensando que eu fosse fazer algo que maculasse o estofamento de seu carro.
Quando comecei a ir aos estádios, tive certa inveja daqueles que levavam radinho para o campo. Eu não levava porque meus amigos achavam aquilo meio ridículo, e na adolescência a última coisa que se quer é que achem você ridículo.
Mas eu ficava pensando em como deveria ser divertido ver o jogo ao vivo e ouvir os narradores ao mesmo tempo. Era como ter a realidade e o sonho juntos. Provavelmente o jogo seria bem mais emocionante assim. E, mesmo que batessem na bandeirinha de escanteio, os chutes teriam raspado na trave.
Já os jogos transmitidos pela televisão ficam melhores se assistidos em grupo. É como se, mal comparando, o rádio fosse a masturbação, e a TV, a suruba. A primeira, mais tímida e dependente da imaginação. A segunda, coletiva e explícita. Eu, confesso, pratico as duas coisas, mas ainda prefiro a primeira. O rádio, maldoso leitor, o rádio.

torero@uol.com.br


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