São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 2002

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BASQUETE

O imigrante

MELCHIADES FILHO
EDITOR DE ESPORTE

No 9º aniversário, o garoto ganhou uma bola de futebol. A cidade vivia o "milagre econômico", as multinacionais injetando dinheiro para garantir a entrada na África negra. Mas a prosperidade não batera à porta da casa de quatro cômodos. Pai e mãe trabalhavam nas docas, dobrando a jornada como corretores imobiliários e revendedores de cimento. O menino, que dividia o quarto com dois irmãos e duas irmãs, agradeceu a Alá pelo generoso e inesperado presente. Embora goleiro nas peladas de rua, sonhava mesmo com Rivellino.
Aos 10 anos, os pais decidiram que devia seguir a trilha do primogênito, Yemi Kaka, ganhador de um concurso para estudar na Inglaterra. Assim, respeitosamente ouviu que a religião da família ficaria em segundo plano, que o tinham matriculado em uma escola cristã, o passaporte mais provável para o intercâmbio.
Aos 11 anos, o jovem muçulmano, bem adaptado, era o goleiro da equipe de futebol e a estrela da de atletismo de sua classe. Os professores, fascinados, pouparam-no das aulas de catecismo.
Aos 12, encantou um olheiro do sistema educacional nigeriano, que o imaginou na seleção municipal de handebol, os espichados braços furando defesas. Para convencer os pais a abortar o sonho, ofereceu uma bolsa no melhor colégio muçulmano do país.
Aos 13 anos, o adolescente tinha esquecido a bola de Rivellino. Era considerado o melhor jogador infanto-juvenil de handebol da populosa Lagos, derrubando recordes no torneio metropolitano.
Mas, por problemas administrativos -a prefeitura perdeu a inscrição de escolas-, a competição não vingou no ano seguinte. Aos 14, frustrado, ele prometeu. Nunca mais ficaria sem medalha. Nem que tivesse de escolher outro esporte. Como o basquete.
Aos 15 anos, disputou seu primeiro jogo com a bola laranja. Em poucas semanas, brilhava pela seleção municipal no campeonato interestadual. Para que ele participasse também no handebol, às vezes emendando partidas, os cartolas usavam uma ambulância. Ao som da sirene, líder em rebotes em um torneio e artilheiro no outro, o adolescente comandou Lagos ao duplo ouro.
Aos 16 anos, já treinava com a seleção nigeriana adulta, apontado como o sucessor do astro do basquete nacional, Yommy Sangodeyi, o Yommy Basket -os fãs berravam "Yommy"!, quando ele arremessava, e "Basket!", quando a bola passava pelo aro.
Aos 17, o handebol definitivamente de lado, o jovem pivô foi eleito o melhor do campeonato africano juvenil. Um norte-americano, técnico da seleção da República Centro-Africana, arranjou-lhe um visto e deu-lhe um guia de universidades nos EUA.
Assim, em outubro de 1980, o filho concretizou a fantasia dos pais. Rejeitou o frio na saída do aeroporto de Nova York e apressou o embarque para Houston.
Aos 39 anos, final da tarde do último sábado na cidade texana, Hakeem Olajuwon despediu-se do esporte que por acaso abraçou.
O homem que detonou a globalização no basquete, que abriu caminho para os Nenês e que, portanto, simboliza a movimentada NBA dos dias de hoje, manteve a lacônica elegância no adeus. "Este é um jogo de habilidades, não de conversa."
Na língua iorubá, convenientemente, Olajuwon significa "aquele que está sempre no topo".

Estranho 1
Pela Universidade de Houston, foram 88 vitórias em 104 partidas. Pelo Houston Rockets, da NBA, foram 1.177 jogos, 26.511 pontos, 13.382 rebotes e dois títulos (93/94 e 94/95). Olajuwon, aliás, detém o recorde histórico de tocos da liga profissional, 3.652.

Estranho 2
O nigeriano foi o único jogador a ganhar, no mesmo campeonato, os três principais troféus individuais da NBA: melhor jogador, melhor jogador das finais e melhor jogador defensivo, tudo em 93/94.

Estranho 3
Olajuwon, que conseguiu a cidadania norte-americana em 1993 e, com isso, pôde defender o "Dream Team" na Olimpíada de 1996, foi o jogador nascido fora dos EUA que mais atuou em All-Star Games, 12 edições. Thomas Meschery, filho de migrantes russos que nasceu na Manchúria (China), foi o primeiro, em 1963.

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