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Filpo Nuñes e a rodada do futebol paulista
SÉRGIO SÁ LEITÃO
especial para a Folha
Conheci o argentino Filpo
Nuñes há cinco anos. O comentarista Roberto Petri fez a apresentação. Ele tinha 76 anos; eu,
27. Quase 50 anos nos separavam. Meio século.
Guardo até hoje o cartão de
visitas que recebi dele. Na frente, aparecem as siglas AFA, a
federação argentina, e CBF;
sob seu nome, a profissão: técnico de futebol. No verso, ele escreve: "Serginho, ligue quando
puder".
Filpo morava num hotel no
centro velho de São Paulo. Não
era, claro, um cinco estrelas.
Três? Duas? Uma?
Você não mora naquela região, exceção feita à ainda
aristocrática av. São Luís,
quando está bem. Filpo não estava. Sentia-se lúcido, capaz de
compartilhar sua história e sua
experiência; mas percebia-se
ignorado. Era um homem só e
queria ser ouvido.
Roberto Petri ancorava uma
mesa-redonda, da qual eu participava com alguma regularidade, e resolveu homenagear
Filpo. Temia, porém, que eu
não o conhecesse; temia, ainda,
que eu, inebriado pelo niilismo
e pela arrogância que caracterizam parte dos jovens jornalistas brasileiros, quisesse atropelar o velhinho.
Ainda lembro as palavras de
Petri: "Chamei o Filpo Nuñes,
aquele da Academia, você sabe? Pois é. Ninguém mais fala
dele e resolvi convidá-lo. Queria pedir para você fazer umas
perguntas, mostrar interesse no
que ele vai dizer. Mas é só um
bloco. Depois a gente fala da
rodada". O que dizer? Que eu
estava emocionado com a
chance de ver e ouvir o único
estrangeiro que já dirigiu a seleção brasileira?
Generoso e rigoroso, Roberto
Petri tinha a consciência de
que seu convidado era muito
mais importante do que uma
rodada do Paulistão. Mas... E o
público, o que acharia? E os outros participantes do programa? Admiro Petri, entre outras
coisas, porque ele teve, naquela
noite, a ousadia de chutar o
ibope (e a rodada) para escanteio; assim, pôde homenagear,
à altura, esse herói do futebol
brasileiro.
Brasileiro? Mundial.
Fiz, claro, o meu "dever de casa", e Filpo encantou-se com as
perguntas do jovem jornalista.
Mas não fiz por dever; fiz por
prazer e justiça.
Conversamos algumas vezes
depois disso. Sua carência era
insaciável. E legítima. Agora,
sinto uma saudade imensa dessas conversas, das "histórias do
Filpo" e daquele incrível sotaque portenho.
Filpo Nuñes morreu no domingo passado, aos 81 anos.
Só e esquecido.
Mais um herói legítimo que
morre assim. Não um herói
qualquer; um herói daquele
que José Lins do Rego, Alceu
Amoroso Lima, Carlos Heitor
Cony e Gilberto Freyre consideraram o maior fenômeno cultural brasileiro no século 20, o
futebol.
Era de outro tempo, certamente. Desconhecia os computadores usados em testes de desempenho e preparo físico.
Mas tinha muito a dizer. Não
pode mais. Mesmo que a gente
queira ouvir. Azar o nosso. Comandou a famosa Academia
do Palmeiras, treinou o Vasco e
o Santos.
Dizia sempre: ""Serginho, veja
o que estão fazendo com esse
talento, o Ronaldinho. Vão
acabar com ele". Filpo Nuñes
faz falta. Pena que os Filpos e
os Petris sejam poucos.
Sérgio Sá Leitão é jornalista e fotógrafo
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