São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Filpo Nuñes e a rodada do futebol paulista

SÉRGIO SÁ LEITÃO
especial para a Folha

Conheci o argentino Filpo Nuñes há cinco anos. O comentarista Roberto Petri fez a apresentação. Ele tinha 76 anos; eu, 27. Quase 50 anos nos separavam. Meio século.
Guardo até hoje o cartão de visitas que recebi dele. Na frente, aparecem as siglas AFA, a federação argentina, e CBF; sob seu nome, a profissão: técnico de futebol. No verso, ele escreve: "Serginho, ligue quando puder".
Filpo morava num hotel no centro velho de São Paulo. Não era, claro, um cinco estrelas. Três? Duas? Uma?
Você não mora naquela região, exceção feita à ainda aristocrática av. São Luís, quando está bem. Filpo não estava. Sentia-se lúcido, capaz de compartilhar sua história e sua experiência; mas percebia-se ignorado. Era um homem só e queria ser ouvido.
Roberto Petri ancorava uma mesa-redonda, da qual eu participava com alguma regularidade, e resolveu homenagear Filpo. Temia, porém, que eu não o conhecesse; temia, ainda, que eu, inebriado pelo niilismo e pela arrogância que caracterizam parte dos jovens jornalistas brasileiros, quisesse atropelar o velhinho.
Ainda lembro as palavras de Petri: "Chamei o Filpo Nuñes, aquele da Academia, você sabe? Pois é. Ninguém mais fala dele e resolvi convidá-lo. Queria pedir para você fazer umas perguntas, mostrar interesse no que ele vai dizer. Mas é só um bloco. Depois a gente fala da rodada". O que dizer? Que eu estava emocionado com a chance de ver e ouvir o único estrangeiro que já dirigiu a seleção brasileira?
Generoso e rigoroso, Roberto Petri tinha a consciência de que seu convidado era muito mais importante do que uma rodada do Paulistão. Mas... E o público, o que acharia? E os outros participantes do programa? Admiro Petri, entre outras coisas, porque ele teve, naquela noite, a ousadia de chutar o ibope (e a rodada) para escanteio; assim, pôde homenagear, à altura, esse herói do futebol brasileiro.
Brasileiro? Mundial.
Fiz, claro, o meu "dever de casa", e Filpo encantou-se com as perguntas do jovem jornalista. Mas não fiz por dever; fiz por prazer e justiça.
Conversamos algumas vezes depois disso. Sua carência era insaciável. E legítima. Agora, sinto uma saudade imensa dessas conversas, das "histórias do Filpo" e daquele incrível sotaque portenho.
Filpo Nuñes morreu no domingo passado, aos 81 anos.
Só e esquecido.
Mais um herói legítimo que morre assim. Não um herói qualquer; um herói daquele que José Lins do Rego, Alceu Amoroso Lima, Carlos Heitor Cony e Gilberto Freyre consideraram o maior fenômeno cultural brasileiro no século 20, o futebol.
Era de outro tempo, certamente. Desconhecia os computadores usados em testes de desempenho e preparo físico.
Mas tinha muito a dizer. Não pode mais. Mesmo que a gente queira ouvir. Azar o nosso. Comandou a famosa Academia do Palmeiras, treinou o Vasco e o Santos.
Dizia sempre: ""Serginho, veja o que estão fazendo com esse talento, o Ronaldinho. Vão acabar com ele". Filpo Nuñes faz falta. Pena que os Filpos e os Petris sejam poucos.


Sérgio Sá Leitão é jornalista e fotógrafo


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