São Paulo, sexta-feira, 13 de novembro de 2009

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XICO SÁ

A arte de se deixar enganar


São-paulino só tem olho e boca para os pontos corridos, ainda mais agora, e ignora outros prazeres da vida

AMIGO TORCEDOR , amigo secador, estava folheando, para tentar entender os juízes de campos e tribunais, o "Código dos Homens Honestos ou a arte de se deixar enganar pelos larápios", do Honoré de Balzac. Sim, o simpático e gordinho francês de quem herdamos não só o adjetivo mas também a tara pelas ditas balzaquianas, esses colossos de mulheres, seja na claridade, sob a luz de velas ou nas pecaminosas noites de apagões.
Página vai e página volta com o vento das esquinas da Pompeia, e eis que me chega o Pereira. Justo o Pereira. Quem dera ele fosse só um daqueles personagens de araque que aparecem no meio das crônicas antigas para dizer algo engraçado ou teses que o autor, por covardia ou zelo, não assume em público ou no jornal.
Em carne, osso e sempre bronzeado como um saudável milionário da família Diniz, o são-paulino nem perde tempo com a lengalenga e trapaças dos juízes. "Você sabe, amigo, que sou a favor dos pontos corridos desde criancinha", diz, logo no primeiro chope, aquele que nos aplica um belo bigode de espuma. "Mas justiça seja feita, este Brasileirão carece de um mata-mata, nem que seja imposto por medida provisória."
Fico ali na base do "como assim", mais interessado nas lindas afilhadas de Balzac que voltam das piscinas do Palmeiras. O desgraçado insiste. Ele perde a melhor das bundas na paisagem, mas não desperdiça a chance de importunar um amigo com uma proposição maluca.
No entendimento de Pereira, após tanta lambança da arbitragem, seja por falha técnica, cleptomania ou sociedade mafiosa, o pior Campeonato Brasileiro desde 1971 precisa não só de um mata-mata. Precisa de dois: um entre os oitos primeiros e o segundo lá embaixo, um tira-teima entre os últimos da tabela.
"Parece injusto, mas ao contrário do que diz Roberto Carlos, um erro conserta outro erro sim, isso é o que penso", diz, agora distribuindo perdigotos inconsequentes para o bar todo. Sim, a frase do rei à qual se refere é a da música "O progresso".
Como bater o Náutico, por exemplo, berra o amigo, perdendo outra gostosa que volta da piscina, se foi o time mais roubado do certame?!
Nem vou falar do que fizeram com o Palmeiras ante o Fluminense e muito menos o pecado que cometeram surrupiando a vitória do Sport contra os verdes. O homem não cessa. E repare que estou cortando ao máximo o sermão, mais longo do que o de Fidel e do padre Antônio Vieira.
Tento aplicar o Balzac à arbitragem. Sem êxito. Caso o amigo se interesse, o livro é ótimo, tradução de Léa Novaes (ed. Nova Fronteira).
Não consegui nem petiscar a moela da nostalgia e falar do juiz ladrão como personagem dramático que emociona o futebol. "Isso é coisa do Nelson Rodrigues, que você copia descaradamente, chega de graça", mandou, trôpego ao caminho do banheiro, para delírio dos garçons.
Pior é que a maioria fechava com o Pereira, mesmo os tricolores como ele, só para demonstrar que o time do Morumbi é macho e capaz de bater qualquer um que apareça.
Além das balzacas que zeram meus dez graus de miopia e astigmatismo, fico com Edgar, meu corvo, em momento de aliança populista com o urubu do Flamengo, seu primo da Gávea.

xico.folha@uol.com.br


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