São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2006

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FUTEBOL

Para bater o pé e subir

SONINHA
COLUNISTA DA FOLHA

Perder aquele pênalti talvez seja o melhor que podia acontecer a Ronaldo a essa altura. Tivesse sido convertido (por que se diz "converter um pênalti?"), não serviria como redenção -um gol no Valencia daria ânimo a seus defensores, mas não diminuiria o ímpeto de seus críticos. Porque podia ser o gol da vitória, feito por um jogador vindo do banco, a mostrar para a torcida: "Ruim comigo, pior sem mim"; um gol para ser dedicado a Raúl, como observou maliciosamente um jornal espanhol. Mas criar uma boa jogada e fazer um mísero gol seriam o mínimo que se espera do astro, ex-melhor do mundo, milionário, titular absoluto da melhor seleção do planeta.
O pênalti perdido passa a representar ou confirmar um conceito muito aceito no futebol: o da fase ruim. Porque "quando a fase é ruim", nada dá certo. A bola bate na trave e sai, o zagueiro salva em cima da linha, o juiz anula gol legítimo. Tudo acontece, inclusive o craque perder um pênalti (muito mal batido, é evidente; não foi uma questão de azar). Mesmo um jogador "velho e gordo" é capaz de fazer melhor do que isso... Foi tão patético e infeliz, que até os gozadores mais ferozes mostram compaixão. O julgamento deixa um pouco de ser na linha do "já era" e se passa a admitir que, ante tanta desgraça, esse pode ser "apenas" um péssimo momento, mas não o fim; talvez a última curva em baixa antes de derradeira recuperação e despedida. O proverbial fundo do poço, ao qual Ronaldo aludiu, onde se pode bater o pé e, enfim, subir.
Não é só porque Ronaldo já protagonizou recuperações espetaculares que devemos confiar na sua volta. Não há nenhuma garantia de que ele seja capaz de uma virada incrível outra vez. Mas eu confio porque... Ora, porque é possível. Só por isso. Ronaldo tem 29 anos -dá tempo!- e a capacidade comprovada de suportar cobranças e sobreviver ao descrédito. Tem experiência e talento (ainda que agora esteja meio oculto). E tem o respeito temeroso dos adversários -que, a menos que sejam muito insolentes (alguns jogadores o são, e às vezes é providencial), ficam intimidados com a responsabilidade de marcar um Ronaldo vestido com a 9 da seleção brasileira.
Com a má fase na Espanha, esse pode ser um trunfo perdido. Ronaldo pode ser menos respeitável. Ou pode demonstrar, nas primeiras partidas pela própria seleção, que não será na Copa sua redenção, mesmo que esse não seja o fim da sua carreira. O importante, portanto, é que Parreira tenha muita firmeza e discernimento para saber a medida em que pretende contar com Ronaldo. Milagres acontecem, mas não é bom fiarmo-nos neles... Sensatamente, sem medo de desrespeitar um passado glorioso ou afrontar um ídolo internacional, pode sacá-lo de um jogo. Quem sabe a história não teria sido muito melhor (para ele, inclusive) se Zagallo tivesse resistido à sua vontade de entrar em campo naquela final de 98? Que o escaldado Ronaldo saiba lidar bem com o fato de não ser mais intocável.

Exceção não vale
Não adianta alguém dizer "tenho amigos negros" para provar que não é racista. Racismo é uma forma gritante de pré-conceito, de avaliação negativa a priori: se é negro, não presta, nem preciso conhecer. É o desprezo indiscriminado, generalizado, a repulsa estúpida aos que não se parecem com você (ou até aos que se parecem; negros às vezes incorporam a má-vontade dos brancos). Um amigo negro pode ser apenas uma exceção em um universo construído de preconceito, e não o fim da disposição de prejulgar todos os demais. Antônio Carlos pode ser amigo do Cesar Sampaio e racista... Seu gesto horrível pode ser útil para que se pense no racismo ainda não admitido por muitos racistas.

E-mail soninha.folha@uol.com.br


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