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1970
O Brasil descobre o Brasil, o melhor do mundo
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Foi só na Copa de 1970, depois
de duas vitórias (58 e 62), que o
brasileiro pôde comprovar ao vivo e em cores que o Brasil era de
fato o melhor do mundo, uma tese que os locutores de rádio vendiam desde que Charles Miller
trouxe a bola para o Brasil e na
qual acreditávamos com fervor.
Foi a primeira Copa com transmissão direta pela televisão. Para
sorte do brasileiro fanático, foi
também a Copa em que o Brasil
apresentou, talvez, o melhor futebol de todos os tempos, capaz de
encantar até estrangeiros como o
escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de um clássico da literatura de esquerda ("As Veias Abertas da América Latina").
Galeano, em "Futebol ao Sol e à
Sombra", derrete-se assim: "No
Mundial de 1970, o Brasil jogou
um futebol digno do gosto pela
festa e da vontade de beleza de sua
gente. Já se impusera no mundo a
mediocridade do futebol defensivo, com o time inteiro atrás, armando a retranca, e lá na frente
um ou dois homens jogando na
maior solidão; já tinham sido
proibidos o risco e a espontaneidade criadora. E aquele Brasil foi
um assombro: apresentou uma
seleção lançada na ofensiva, que
jogava com quatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino,
que, às vezes, eram cinco e até
seis, quando Gérson e Carlos Alberto chegavam de trás. Na final,
esse trator pulverizou a Itália" (o
placar do jogo foi 4 a 1).
Detalhe importante: Galeano
certamente estava entre aqueles
que hesitavam entre torcer por esse formidável "trator" ou fechar
os olhos, pelo temor de que uma
vitória na Copa do México desse
gás ao regime militar que vivia,
então, o seu momento de maior
ardor repressivo.
Se, ainda assim, consegue cantar um hino tão apaixonado de
amor ao futebol brasileiro de
1970, é porque algo de extraordinário realmente se viu nos campos. Pena que a maior parte do
público só pôde ver em branco-e-preto porque a transmissão colorida estava ainda em teste e só seria adotada definitivamente dois
anos depois.
Este pobre colunista sentiu na
pele o encantamento do brasileiro
com o time de 1970. Ousou escrever, no fim do ano passado, que o
"quarteto mágico" de 2006 (Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Kaká
e Robinho) poderia ser melhor do
que o de 1970 (o meu quarteto era
o mesmo de Galeano, mas trocando Jairzinho por Gérson).
Choveram e-mails indignados,
o menos ofensivo deles mandando que eu voltasse a escrever sobre política que de futebol não entendia nada (o que acabava sendo
um elogio porque pressupõe que
entendo de política, o que é falso).
Com a fase atual de Ronaldo e
Adriano, começo a achar que os
leitores tinham razão.
Voltemos a 1970. Não foi só o
ano da estréia da transmissão direta. Inaugurou também o cartão
vermelho e o cartão amarelo,
além da possibilidade de substituição de jogadores, com o que o
futebol tomava o formato que,
mais ou menos, veio até hoje.
Lembre-se que, oito anos antes,
na Copa de 1962, Pelé se machucou logo no primeiro jogo (contra
a então Tchecoslováquia), mas teve que permanecer em campo.
"Os defensores adversários nem
tentavam tirar-lhe a bola quando
esta lhe era passada; respeitosamente esperavam que Pelé passasse para outro companheiro",
conta Luiz Fernando Baggio, no
livro "Copas do Mundo - Histórias e Estatísticas".
Nem sei se é verdade, porque,
até a Copa de 1966, dependíamos
da versão dos locutores de rádio,
que eram ao mesmo tempo muito
competentes mas muito, muito,
muito, patriotas. Em 1970, não.
Dependíamos de nossos próprios
olhos e do nosso próprio juízo, o
que mudou para sempre a face
das Copas e, naturalmente, do futebol no mundo todo.
De esporte, o futebol virou "business". De um torneio restrito a
países da América Latina e Europa, com uma outra intromissão
de africanos e asiáticos, a Copa se
transformou de fato em
Mundial: em 1970, 68
países disputaram as eliminatórias, número que,
quatro anos depois, saltou para 90 (hoje são 193,
mais que o número de
membros das Nações
Unidas, como gosta de
dizer Joseph Blatter, o
presidente da Fifa).
A televisão permitiu,
pela primeira vez, a escalação do que os cronistas
esportivos da época chamaram de "seleção do
povo". Antes, só os mineiros, por exemplo, podiam amar ou odiar o futebol de Tostão (dependendo de serem cruzeirenses ou atleticanos)
porque eram relativamente raras as chances
de vê-lo ao vivo jogar no
Rio, em São Paulo ou nos
outros Estados.
A Copa acabou provando que,
ao menos no futebol, a voz do povo é de fato a voz de Deus: não só
o Brasil ganhou seu terceiro mundial como, pela primeira e única
vez na história, seis jogadores de
um mesmo país foram eleitos para a seleção da Copa, todos brasileiros, é claro (Carlos Alberto,
Clodoaldo, Jairzinho, Gérson, Pelé e Rivellino). Antes e depois, o
máximo foi cinco de uma mesma
seleção. Quer apostar que esse recorde será quebrado na Copa do
Mundo deste ano?
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