São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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1970

O Brasil descobre o Brasil, o melhor do mundo

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Foi só na Copa de 1970, depois de duas vitórias (58 e 62), que o brasileiro pôde comprovar ao vivo e em cores que o Brasil era de fato o melhor do mundo, uma tese que os locutores de rádio vendiam desde que Charles Miller trouxe a bola para o Brasil e na qual acreditávamos com fervor.
Foi a primeira Copa com transmissão direta pela televisão. Para sorte do brasileiro fanático, foi também a Copa em que o Brasil apresentou, talvez, o melhor futebol de todos os tempos, capaz de encantar até estrangeiros como o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de um clássico da literatura de esquerda ("As Veias Abertas da América Latina").
Galeano, em "Futebol ao Sol e à Sombra", derrete-se assim: "No Mundial de 1970, o Brasil jogou um futebol digno do gosto pela festa e da vontade de beleza de sua gente. Já se impusera no mundo a mediocridade do futebol defensivo, com o time inteiro atrás, armando a retranca, e lá na frente um ou dois homens jogando na maior solidão; já tinham sido proibidos o risco e a espontaneidade criadora. E aquele Brasil foi um assombro: apresentou uma seleção lançada na ofensiva, que jogava com quatro atacantes, Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino, que, às vezes, eram cinco e até seis, quando Gérson e Carlos Alberto chegavam de trás. Na final, esse trator pulverizou a Itália" (o placar do jogo foi 4 a 1).
Detalhe importante: Galeano certamente estava entre aqueles que hesitavam entre torcer por esse formidável "trator" ou fechar os olhos, pelo temor de que uma vitória na Copa do México desse gás ao regime militar que vivia, então, o seu momento de maior ardor repressivo.
Se, ainda assim, consegue cantar um hino tão apaixonado de amor ao futebol brasileiro de 1970, é porque algo de extraordinário realmente se viu nos campos. Pena que a maior parte do público só pôde ver em branco-e-preto porque a transmissão colorida estava ainda em teste e só seria adotada definitivamente dois anos depois.
Este pobre colunista sentiu na pele o encantamento do brasileiro com o time de 1970. Ousou escrever, no fim do ano passado, que o "quarteto mágico" de 2006 (Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo, Kaká e Robinho) poderia ser melhor do que o de 1970 (o meu quarteto era o mesmo de Galeano, mas trocando Jairzinho por Gérson).
Choveram e-mails indignados, o menos ofensivo deles mandando que eu voltasse a escrever sobre política que de futebol não entendia nada (o que acabava sendo um elogio porque pressupõe que entendo de política, o que é falso).
Com a fase atual de Ronaldo e Adriano, começo a achar que os leitores tinham razão.
Voltemos a 1970. Não foi só o ano da estréia da transmissão direta. Inaugurou também o cartão vermelho e o cartão amarelo, além da possibilidade de substituição de jogadores, com o que o futebol tomava o formato que, mais ou menos, veio até hoje.
Lembre-se que, oito anos antes, na Copa de 1962, Pelé se machucou logo no primeiro jogo (contra a então Tchecoslováquia), mas teve que permanecer em campo. "Os defensores adversários nem tentavam tirar-lhe a bola quando esta lhe era passada; respeitosamente esperavam que Pelé passasse para outro companheiro", conta Luiz Fernando Baggio, no livro "Copas do Mundo - Histórias e Estatísticas".
Nem sei se é verdade, porque, até a Copa de 1966, dependíamos da versão dos locutores de rádio, que eram ao mesmo tempo muito competentes mas muito, muito, muito, patriotas. Em 1970, não. Dependíamos de nossos próprios olhos e do nosso próprio juízo, o que mudou para sempre a face das Copas e, naturalmente, do futebol no mundo todo.
De esporte, o futebol virou "business". De um torneio restrito a países da América Latina e Europa, com uma outra intromissão de africanos e asiáticos, a Copa se transformou de fato em Mundial: em 1970, 68 países disputaram as eliminatórias, número que, quatro anos depois, saltou para 90 (hoje são 193, mais que o número de membros das Nações Unidas, como gosta de dizer Joseph Blatter, o presidente da Fifa).
A televisão permitiu, pela primeira vez, a escalação do que os cronistas esportivos da época chamaram de "seleção do povo". Antes, só os mineiros, por exemplo, podiam amar ou odiar o futebol de Tostão (dependendo de serem cruzeirenses ou atleticanos) porque eram relativamente raras as chances de vê-lo ao vivo jogar no Rio, em São Paulo ou nos outros Estados.
A Copa acabou provando que, ao menos no futebol, a voz do povo é de fato a voz de Deus: não só o Brasil ganhou seu terceiro mundial como, pela primeira e única vez na história, seis jogadores de um mesmo país foram eleitos para a seleção da Copa, todos brasileiros, é claro (Carlos Alberto, Clodoaldo, Jairzinho, Gérson, Pelé e Rivellino). Antes e depois, o máximo foi cinco de uma mesma seleção. Quer apostar que esse recorde será quebrado na Copa do Mundo deste ano?


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