São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006

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JOSÉ GERALDO COUTO

Frango e castigo


Uma falha como a do goleiro Paul Robinson serve para nos lembrar da precariedade da condição humana


A IMAGEM da semana é a do frango espetacular do goleiro Paul Robinson no jogo em que a Inglaterra perdeu por 2 a 0 da Croácia nas eliminatórias da Eurocopa. Foi um lance inesquecível.
O ala Gary Neville atrasou de mansinho para o goleiro, que não tinha rivais por perto e poderia até ter feito embaixadinha antes de repor a bola em jogo. Mas Robinson preferiu chutar de primeira, como se estivesse acossado por uma horda de atacantes. Um morrinho o iludiu e ele errou a bola, cometendo num gesto os dois deslizes mais grotescos do futebol: a furada e o frango.
Quando Nelson Rodrigues escreveu que "a poesia do futebol está no frango", muita gente interpretou a frase como mais uma "boutade" do escritor. Mas é a pura verdade. Em poucos momentos da existência o homem se mostra um ser tão frágil e tragicômico quanto no instante fatal em que uma bola fácil de defender escapa-lhe pelos vãos dos dedos, ou por entre as pernas, e vai morrer zombeteira no fundo das redes.
Se vivesse em nossa época, Dostoiévski poderia escrever um de seus caudalosos romances sobre os abismos de vergonha e de culpa a que um indivíduo é lançado ao tomar um frango.
O grande Marcos, que já conheceu o céu e o inferno da condição de goleiro, sofreu um frango parecido com o de Robinson há uns cinco anos, numa goleada sofrida pelo Palmeiras. Não me lembro do adversário e tampouco do placar, mas a cena permanece nítida na memória: Marcos foi afastar com o pé uma bola rasteira e chutou o ar, num movimento que demonstrava desorientação e revolta pela crise do time.
Foi, como o de Robinson, o que poderíamos chamar de frango "ativo", em contraste com o trivial frango "passivo", em que o arqueiro se limita a deixar a bola passar. Ativo ou passivo, o frango é sempre um momento de desconcerto, um lance inesperado que abala a ordem natural das coisas e lança a todos -goleiro, companheiros, adversários, torcida- na perplexidade. Por uma fração de segundos, nos damos conta da nossa condição precária diante do cosmo.
O frango é, numa pedagogia de choque, uma lição de humildade. Se não conseguimos domar nem sequer uma modesta esfera de couro, que pretensão podemos ter quanto ao vasto mundo e seus desvãos?
As câmeras de TV se regozijam em exibir de todos os ângulos a falha incomparável e, em seguida, com zooms impiedosos, o rosto humilhado do frangueiro. Para quem escarnece da penosa (hahaha) situação do goleiro, dá vontade de repetir os versos de T. S. Eliot: "Lembre-se de Flebas/ que um dia foi alto e belo como você". No poema, Flebas, o fenício, é um mercador que se afogou e, no fundo do mar, "esqueceu o grito das gaivotas, o marulho do oceano, os lucros e perdas". Flebas, você sabe, somos nós.

O ROTO E O RASGADO
O Corinthians entra em campo esfacelado para o "clássico das multidões", contra o Flamengo. Diante do Lanús, o alvinegro mostrou toda a sua inconsistência tática, insuficiência técnica e instabilidade emocional. Ué, Leão não ia botar ordem na casa? O Fla não está em situação muito melhor, e nada garante que não voltará à zona da degola. É jogo de desesperados.

O NOVO DIRCEUZINHO
Elano, quem mais tem se valorizado na atual fase da seleção, é uma nova versão do Dirceu, que jogou nas Copas de 74, 78 e 82: eficiente, industrioso, polivalente, com bom domínio dos principais fundamentos, sem grande brilho e sem grande vaidade. Talvez seja um bom contraponto ao excesso de estrelas um tanto autocentradas do grupo que fracassou na Alemanha.

jgcouto@uol.com.br


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