São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2010

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JOSÉ GERALDO COUTO

O leite derramado


O persistente trauma de Júlio César ilumina o sentimento humano do "erro que mudou tudo"

"É UM GOL que está me machucando muito", declarou anteontem ao Sportv o goleiro Júlio César, da Inter de Milão. Apesar do verbo no presente, o gol a que ele se referia aconteceu há mais de três meses, em Port Elizabeth, África do Sul.
Foi o primeiro gol holandês na partida que eliminou o Brasil da Copa do Mundo. No lance, como todos se lembram, Júlio César falhou, ao bater cabeça com Felipe Melo.
Mas será que todos se lembram mesmo? Faz tanto tempo e de lá para cá aconteceu tanta coisa. O que importa é que Júlio César se lembra.
O goleiro revelou na mesma entrevista que ficou oito dias sem sair de casa, envergonhado e deprimido, depois da eliminação na Copa. "Até hoje, quando me deito, coloco a cabeça no travesseiro e lamento", afirmou.
Mais do que mostrar que no peito dos milionários astros do futebol "também bate um coração", o persistente trauma de Júlio César fala de um sentimento muito humano, a sensação de que, num determinado momento da vida, tudo desandou.
Num átimo, o destino saiu dos eixos e tomou uma estrada errada.
A entrevista do craque me lembrou de imediato um con- to extraordinário de Sérgio Sant'Anna chamado "No Último Minuto", de 1973.
No conto, um goleiro fica remoendo em detalhes, de modo masoquista, o frango que tomou no último minuto de um jogo decisivo. Assiste a todos os videoteipes, revê o lance de vários ângulos e em câmera lenta. Espia o erro para expiar a culpa. É uma apoteose de autoflagelação.
É inevitável pensar também em Barbosa, que durante meio século carregou injustamente a cruz da culpa pela derrota do Brasil na final de 1950, contra o Uruguai. Não foi um frango, foi uma falha mínima, um pequeno erro de cálculo, mas as consequências catastróficas do revés o condenaram a ser uma espécie de pária o resto da vida.
O técnico Zagallo chegou a proibir a entrada de Barbosa na concentração da seleção brasileira durante a preparação para a Copa de 1998, sob o argumento de que ele dava azar.
No belo curta-metragem "Barbosa", realizado em 1988 por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, um homem que assistiu quando menino ao Maracanazo de 1950 volta no tempo para alertar Barbosa e evitar o lance fatídico. Mas sua intervenção é desastrosa: ele acaba distraindo o goleiro e produzindo o erro que queria evitar.
O leite derramado jamais voltará à leiteira.

jgcouto@uol.com.br


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