São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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JOSÉ ROBERTO TORERO

Uma carta do futuro

Parente distante, estudante de história esportiva me escreve para esclarecer dúvidas sobre o futebol

PRESENTE LEITORA, passado leitor, hoje vocês estão lendo este texto porque ontem eu recebi uma carta de amanhã.
Explico melhor. Quando cheguei em casa encontrei um envelope misterioso debaixo da porta. Era verde, fosforescente, e, dentro dele, havia uma carta que dizia o seguinte. "Bom dia, meu nome é Trug67.
Você não me conhece, mas sou um parente seu. Mais que parente. Na verdade, sou seu descendente.
Calma, não estou aqui para pedir um exame de DNA. Sou apenas o seu tatatatatatatatataraneto. Venho do futuro, e isso é o que importa. Sei que deve ser estranho você receber esta carta, mas seria muito complicado explicar-lhe como funciona o correio do tempo. Digo apenas que gastei uma fortuna em selos.
Sou estudante de história esportiva, e esse é, por assim dizer, o motivo da minha carta. É que estou de viagem para Europa (não o continente, mas sim o satélite de Júpiter), onde devo fazer uma exposição sobre o espetáculo do futebol nas sociedades primitivas. Essa é a área na qual estou me formando e, pelo que dizem os arquivos, o senhor foi (perdão, é) um cronista esportivo.
Tenho acesso a algum material filmado que sobreviveu à Terceira Guerra Mundial (também conhecida como "O Porre de Bush"). Mas este material me parece tão absurdo que suponho serem trechos de filmes de ficção e não matérias jornalísticas.
As primeiras imagens mostram filas de torcedores tentando comprar ingressos para uma partida. Eles ficavam em filas longuíssimas, parecendo bois no caminho do matadouro, e eram atendidos por poucos guichês. Às vezes acontecia um tumulto, e uns homens de capacete avançavam sobre eles dando-lhes porretadas.
É verdade que isso acontecia?
Num outro rolo vi que os torcedores chegavam ao estádio horas antes dos jogos, sentavam-se sobre o concreto e ficavam batendo em tambores e cantando hinos expostos ao sol e à chuva. Isso com certeza é mentira, pois sei que até o Coliseu romano tinha um rudimentar sistema de proteção contra as intempéries.
Noutra imagem um torcedor se queixa do preço do ingresso. Parece que havia um tipo de profissional chamado cambista, e este podia, com a conivência das autoridades, pedir o valor que bem entendesse pelo ingresso. Inacreditável!
Faço essas perguntas mais por desencargo de consciência, porque tenho quase certeza de que na sua época já existia a torcida de hologramas, tornando dispensáveis não apenas os torcedores de carne e osso como também aqueles paquidermes de concreto mal planejados e desconfortáveis, conhecidos como estádios.
Essas são, velho ancestral, as minhas dúvidas. Por favor responda escrevendo um artigo em seu jornal de amanhã, pois um exemplar dele chegou até nós (falando nisso, São Paulo era uma cidade bonita? Sobraram poucas imagens depois da Grande Enchente).
Ah, sim, só mais uma coisa.
No começo do ano que vem, o senhor será convidado para um Baile do Havaí, em Santos. Nesse baile, o senhor conhecerá uma senhorita de sarongue rosa, e ela vai desafiá-lo para ver quem toma mais batidas de coco. Por favor, aceite o desafio. Sem essa competição, eu não nascerei.
Só lamento pelo seu fígado.
Mas ele ainda durará alguns meses. Atenciosamente, Trug67."
Bem, caro Trug67, só posso dizer que todas as imagens que você viu são verdadeiras.
O futebol era um esporte selvagem mesmo. Mas tinha lá sua graça. Quanto ao seu aviso, informo-lhe que daqui por diante evitarei as batidas de coco. A não ser, é claro, que venham com aquelas raspinhas. Aí não tem jeito. Abraços, do seu tatatatatatatatataravô, Torero.


torero@uol.com.br

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