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JOSÉ ROBERTO TORERO
Uma carta do futuro
Parente distante, estudante de história esportiva me
escreve para esclarecer dúvidas sobre o futebol
PRESENTE LEITORA, passado leitor, hoje vocês
estão lendo este texto
porque ontem eu recebi uma
carta de amanhã.
Explico melhor. Quando
cheguei em casa encontrei
um envelope misterioso debaixo da porta. Era verde, fosforescente, e, dentro dele, havia uma carta que dizia o seguinte.
"Bom dia, meu nome é
Trug67.
Você não me conhece, mas
sou um parente seu. Mais que
parente. Na verdade, sou seu
descendente.
Calma, não estou aqui para
pedir um exame de DNA. Sou
apenas o seu tatatatatatatatataraneto. Venho do futuro, e
isso é o que importa. Sei que
deve ser estranho você receber esta carta, mas seria muito complicado explicar-lhe
como funciona o correio do
tempo. Digo apenas que gastei uma fortuna em selos.
Sou estudante de história
esportiva, e esse é, por assim
dizer, o motivo da minha carta. É que estou de viagem para
Europa (não o continente,
mas sim o satélite de Júpiter),
onde devo fazer uma exposição sobre o espetáculo do futebol nas sociedades primitivas. Essa é a área na qual estou me formando e, pelo que
dizem os arquivos, o senhor
foi (perdão, é) um cronista esportivo.
Tenho acesso a algum material filmado que sobreviveu
à Terceira Guerra Mundial
(também conhecida como "O
Porre de Bush"). Mas este
material me parece tão absurdo que suponho serem trechos de filmes de ficção e não
matérias jornalísticas.
As primeiras imagens mostram filas de torcedores tentando comprar ingressos para
uma partida.
Eles ficavam em filas longuíssimas, parecendo bois no
caminho do matadouro, e
eram atendidos por poucos
guichês. Às vezes acontecia
um tumulto, e uns homens de
capacete avançavam sobre
eles dando-lhes porretadas.
É verdade que isso acontecia?
Num outro rolo vi que os
torcedores chegavam ao estádio horas antes dos jogos, sentavam-se sobre o concreto e
ficavam batendo em tambores e cantando hinos expostos
ao sol e à chuva. Isso com certeza é mentira, pois sei que
até o Coliseu romano tinha
um rudimentar sistema de
proteção contra as intempéries.
Noutra imagem um torcedor se queixa do preço do ingresso. Parece que havia um
tipo de profissional chamado
cambista, e este podia, com a
conivência das autoridades,
pedir o valor que bem entendesse pelo ingresso. Inacreditável!
Faço essas perguntas mais
por desencargo de consciência, porque tenho quase certeza de que na sua época já
existia a torcida de hologramas, tornando dispensáveis
não apenas os torcedores de
carne e osso como também
aqueles paquidermes de concreto mal planejados e desconfortáveis, conhecidos como estádios.
Essas são, velho ancestral,
as minhas dúvidas. Por favor
responda escrevendo um artigo em seu jornal de amanhã,
pois um exemplar dele chegou até nós (falando nisso,
São Paulo era uma cidade bonita? Sobraram poucas imagens depois da Grande Enchente).
Ah, sim, só mais uma coisa.
No começo do ano que vem, o
senhor será convidado para
um Baile do Havaí, em Santos. Nesse baile, o senhor conhecerá uma senhorita de sarongue rosa, e ela vai desafiá-lo para ver quem toma mais
batidas de coco. Por favor,
aceite o desafio. Sem essa
competição, eu não nascerei.
Só lamento pelo seu fígado.
Mas ele ainda durará alguns
meses.
Atenciosamente, Trug67."
Bem, caro Trug67, só posso
dizer que todas as imagens
que você viu são verdadeiras.
O futebol era um esporte selvagem mesmo. Mas tinha lá
sua graça. Quanto ao seu aviso, informo-lhe que daqui por
diante evitarei as batidas de
coco. A não ser, é claro, que
venham com aquelas raspinhas. Aí não tem jeito. Abraços, do seu tatatatatatatatataravô, Torero.
torero@uol.com.br
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