São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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A Copa dos insones

MILTON HATOUM

Bem-aventurada a Copa na Ásia, que dá aos insones um pouco de ânimo e emoção nas noites maçantes e quase sem fim.
A vantagem de ser um corujão insone é que às três da madrugada estamos tão acesos quanto os torcedores no outro lado do mundo, em plena tarde de verão. Mas a insônia é uma espécie de pesadelo em noites passadas em branco. Pensei nisso quando vi a eliminação da Argentina. Impossível não vir à mente um conto de Jorge Luis Borges: ""Funes, o Memorioso". É um relato sobre a insônia, a eterna vigília de uma personagem que se lembra de tudo com os mínimos detalhes.
Lembrar-se de tudo é o pesadelo dos que nunca dormem, ou dos que não se esquecem de nada. Nesse conto, Borges, um escritor ""meramente argentino", fala da memória histórica e individual: a memória atroz de Irineo Funes e, por meio dele, a da Argentina.
Confesso que não vibrei com o fracasso da seleção de Simeone. Esse fracasso tem algo de tristemente simbólico, de fatalidade terrível do destino de um país que já foi grandioso, invejado até pela velha Europa. Noventa e poucos minutos de desespero pareciam traduzir décadas de aflição, violência, corrupção e populismo no país representado pelos jogadores. Certo, havia a empáfia de Batistuta, mas a choradeira do craque no fim do jogo parecia expressar mais do que uma despedida desta e de todas as Copas.
No jogo contra a Suécia, o gol chorado, no rebote de um pênalti, veio tarde demais. Foi uma esperança tardia, depois de uma expectativa enorme, apagada pela inabilidade de um técnico teimoso, muito menos capaz que o mais incapaz dos jogadores argentinos. A seleção de Sorín não jogava apenas contra a Suécia. A meu ver, tentava lutar contra um peso moral enorme: o dilaceramento e a decadência de um país.
Esse lamento de um mero fã do futebol e da literatura argentina tem suas razões. Sem esse timaço, a Copa do Mundo fica mais pálida, muito mais tediosa, muito menos vibrante. A Argentina, temível e respeitada, era o fantasma de todos. Caiu como um gigante atordoado diante de jogadores de nomes impronunciáveis.
Assisti ao jogo Argentina x Inglaterra num bar do Soho, em Londres. A fumaceira dos cigarros incomodava menos que o silêncio, fruto do temor das tabelas rápidas e fulminantes, dos dribles e arrancadas dos argentinos. Uns segundos antes do pênalti que deu a vitória à Inglaterra, cutuquei um colega inglês, Alex Bellos, autor de um livro sobre o futebol brasileiro, e vaticinei: vocês venceram. Alex apenas murmurou: ""Calma, vamos ver...". O gol provocou uma explosão de alegria no bar; logo depois voltaram o silêncio e o medo, só comparáveis ao silêncio estarrecedor e ao calafrio no conto ""A queda da casa de Usher", de Allan Poe.
Pensei: como a seleção de um pobre país sul-americano pode abalar um ex-Império!!
Rivaldo tem boas razões para comemorar a eliminação da Argentina. Que outro time pode ameaçar tão de perto o Brasil? Concordo, nossa defesa é mais vulnerável que a dos times que jogam na retranca. Não é o caso do Senegal, mas as grandes seleções ainda preferem a retranca ao risco, a força física ao risco e à surpresa de um grande drible.
O futebol defensivo é uma chatice, impõe um jogo tedioso de paciência e lances previsíveis.
Nesta Copa, em que alguns times bacanas fracassaram antes do tempo, o Brasil só tende a crescer. Mas é possível crescer sem um razoável sistema defensivo?
Sou apenas um torcedor e ex-zagueiro fajuto de timeco de várzea; por isso, não tenho nenhuma sugestão para melhorar a nossa defesa. Cabe ao enigmático Scolari arrumar aquela alegre bagunça na grande área brasileira. Se não arrumar, a culpa é dele, que teve tempo para pensar em tática, estratégia, armação e o diabo. Se a Costa Rica fez dois gols e perdeu quatro, sorte do Brasil. Mas e a Inglaterra?
Senegal é, até agora, a maior sensação dessa Copa. Ontem, quem amanheceu vendo os dribles de Diouf e Camara na vitória contra a Suécia, não assistiu a um jogo, e sim a um espetáculo. O time senegalês já justificou a presença da África na Ásia. Senegal é uma seleção ou um assombro?


Milton Hatoum é escritor, autor dos romances ""Dois Irmãos" e ""Relato de um Certo Oriente"


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