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A Copa dos insones
MILTON HATOUM
Bem-aventurada a Copa
na Ásia, que dá aos insones um pouco de ânimo e
emoção nas noites maçantes e
quase sem fim.
A vantagem de ser um corujão
insone é que às três da madrugada estamos tão acesos quanto os
torcedores no outro lado do mundo, em plena tarde de verão. Mas
a insônia é uma espécie de pesadelo em noites passadas em branco. Pensei nisso quando vi a eliminação da Argentina. Impossível não vir à mente um conto de
Jorge Luis Borges: ""Funes, o Memorioso". É um relato sobre a insônia, a eterna vigília de uma
personagem que se lembra de tudo com os mínimos detalhes.
Lembrar-se de tudo é o pesadelo dos que nunca dormem, ou dos
que não se esquecem de nada.
Nesse conto, Borges, um escritor
""meramente argentino", fala da
memória histórica e individual: a
memória atroz de Irineo Funes e,
por meio dele, a da Argentina.
Confesso que não vibrei com o
fracasso da seleção de Simeone.
Esse fracasso tem algo de tristemente simbólico, de fatalidade
terrível do destino de um país que
já foi grandioso, invejado até pela
velha Europa. Noventa e poucos
minutos de desespero pareciam
traduzir décadas de aflição, violência, corrupção e populismo no
país representado pelos jogadores. Certo, havia a empáfia de Batistuta, mas a choradeira do craque no fim do jogo parecia expressar mais do que uma despedida desta e de todas as Copas.
No jogo contra a Suécia, o gol
chorado, no rebote de um pênalti,
veio tarde demais. Foi uma esperança tardia, depois de uma expectativa enorme, apagada pela
inabilidade de um técnico teimoso, muito menos capaz que o
mais incapaz dos jogadores argentinos. A seleção de Sorín não
jogava apenas contra a Suécia. A
meu ver, tentava lutar contra um
peso moral enorme: o dilaceramento e a decadência de um país.
Esse lamento de um mero fã do
futebol e da literatura argentina
tem suas razões. Sem esse timaço,
a Copa do Mundo fica mais pálida, muito mais tediosa, muito
menos vibrante. A Argentina, temível e respeitada, era o fantasma de todos. Caiu como um gigante atordoado diante de jogadores de nomes impronunciáveis.
Assisti ao jogo Argentina x Inglaterra num bar do Soho, em
Londres. A fumaceira dos cigarros incomodava menos que o silêncio, fruto do temor das tabelas
rápidas e fulminantes, dos dribles
e arrancadas dos argentinos. Uns
segundos antes do pênalti que
deu a vitória à Inglaterra, cutuquei um colega inglês, Alex Bellos, autor de um livro sobre o futebol brasileiro, e vaticinei: vocês
venceram. Alex apenas murmurou: ""Calma, vamos ver...". O gol
provocou uma explosão de alegria no bar; logo depois voltaram
o silêncio e o medo, só comparáveis ao silêncio estarrecedor e ao
calafrio no conto ""A queda da casa de Usher", de Allan Poe.
Pensei: como a seleção de um
pobre país sul-americano pode
abalar um ex-Império!!
Rivaldo tem boas razões para
comemorar a eliminação da Argentina. Que outro time pode
ameaçar tão de perto o Brasil?
Concordo, nossa defesa é mais
vulnerável que a dos times que
jogam na retranca. Não é o caso
do Senegal, mas as grandes seleções ainda preferem a retranca
ao risco, a força física ao risco e à
surpresa de um grande drible.
O futebol defensivo é uma chatice, impõe um jogo tedioso de
paciência e lances previsíveis.
Nesta Copa, em que alguns times bacanas fracassaram antes
do tempo, o Brasil só tende a crescer. Mas é possível crescer sem um
razoável sistema defensivo?
Sou apenas um torcedor e ex-zagueiro fajuto de timeco de várzea; por isso, não tenho nenhuma
sugestão para melhorar a nossa
defesa. Cabe ao enigmático Scolari arrumar aquela alegre bagunça na grande área brasileira.
Se não arrumar, a culpa é dele,
que teve tempo para pensar em
tática, estratégia, armação e o
diabo. Se a Costa Rica fez dois
gols e perdeu quatro, sorte do
Brasil. Mas e a Inglaterra?
Senegal é, até agora, a maior
sensação dessa Copa. Ontem,
quem amanheceu vendo os dribles de Diouf e Camara na vitória
contra a Suécia, não assistiu a
um jogo, e sim a um espetáculo. O
time senegalês já justificou a presença da África na Ásia. Senegal
é uma seleção ou um assombro?
Milton Hatoum é escritor, autor dos romances ""Dois Irmãos" e ""Relato de um
Certo Oriente"
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