São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2008

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JOSÉ ROBERTO TORERO

Onde as cãs se encontram


Numa partida da 4ª divisão de SP, descubro torcedores, histórias e a certeza de que é cedo para pintar os cabelos

DOMINGO pela manhã decidi fazer um programa diferente: ver um jogo da quarta (e última) divisão do futebol paulista.
Pensei que encontraria apenas os jogadores de São Vicente e Osasco no campo. Ledo engano. Havia pelo menos 600 pessoas nas arquibancadas. O curioso é que muitos torcedores tinham algo que não se vê mais nos estádios: cabelos brancos.
Era o caso de Expedito Lago, 63, um coletor de lixo de cabelos encaracolados e esvoaçantes. Ele é daqueles torcedores solitários que valem por uma organizada. Expedito fica de pé todo o tempo e jamais pára de gritar aos jogadores ordens como: "Vambora!", "Passa!", "Volta para marcar!", "Olha a bobeira!".
Quando lhe perguntei o motivo de falar tanto, ele disse: "Vou ficar quieto por quê?". E depois saiu de perto de mim, deixando claro que eu estava atrapalhando seu desempenho.
Pedro Spilotros, o Pedrinho, de 85 anos, usava uma camisa pelo aniversário de 80 anos do clube (o São Vicente existe desde 1928, mas só há alguns anos se profissionalizou). Ele conta que foi um bom meia e que jogou muito pelo clube. Aliás, sua maior glória foi ter feito gol no jogo de inauguração do estádio, em 1948.
Pedro está pouco falante. Ficou viúvo há dois meses. Pergunto onde posso comprar uma camisa igual à sua, e ele me indica um senhor de cabeça branca, que me leva até uma sala embaixo da arquibancada do estádio. Compro a camisa e fico sabendo que o vendedor chama-se Manoel Carvalho, tem 76 anos, e é o próprio presidente do clube.
Manoel é mais conhecido como Pardal, apelido que ganhou por jogar na ponta-esquerda, assim como o Pardal original, que fez parte do célebre ataque do São Paulo na década de 40. Pardal foi vice-presidente por mais de 20 anos. "Só assumi porque o presidente morreu em 2006, mas eu nunca quis isso, não."
Ele não gosta muito de ver jogos no campo. Para evitar emoção, prefere ver o videoteipe na emissora local. Ex-gerente de banco, Pardal conta que a situação do clube não é horrível, mas também não é muito boa. O clube tem a melhor média de público da divisão e não há nenhuma dívida, mas o dinheiro é pouco. Os atletas ganham, em média, um salário mínimo. Metade dos jogadores é do clube, a outra metade, de um empresário de São Bernardo do Campo.
Enquanto falo com Pardal, o São Vicente leva um gol. Agora perde por 1 a 2. Com o resultado, o clube deve cair para o quarto lugar, posição perigosa (só 4 dos 8 times do grupo avançam à próxima fase).
O São Vicente pressiona. Atrás do gol inimigo há três esperançosos torcedores: Jurandir (75), Natalício (69) e o caçula Sérgio (62). Os três são aposentados e sempre vêm para o estádio a pé.
Curiosamente, só Sérgio, o mais jovem, possui cãs. Natalício está com o topo da cabeça caju ("Pintei, mas não deu certo, não"), e Jurandir tem quase todos os cabelos negros.
Dou-lhe os parabéns, mas o honesto Jurandir explica que eles só estão assim por causa de uma daqueles loções que tingem gradualmente. "Por que você não usa?"
O juiz apita, e o Osasco vence. Na saída, enquanto caminho ao lado do cemitério que fica grudado no estádio, passo a mão na cabeça e penso que ainda não é a hora.

torero@uol.com.br


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