São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 2006

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SONINHA

Necessidade e vontade


A bola pode ser refeição desenxabida ou algo que se deseje... Jogador pode matar a fome sem vontade de comer


FOME E VONTADE de comer, apesar de fáceis de confundir, não são a mesma coisa; daí a possível união das duas, consagrada na expressão popular. Fome é necessidade básica; vontade de comer é desejo, cobiça, anseio. Para matar a fome, vale tudo, conforme o tamanho da necessidade -prato corriqueiro, comida sem tempero, até aquilo que normalmente não apeteceria ou, em caso extremo, causaria repulsa. Já a vontade de comer pode bater até quando não se tem fome. Durante as horas em que escrevo no computador, posso não estar com fome, mas fico o tempo todo querendo comer alguma coisa...
Não faço essas considerações só para queimar calorias, ou melhor, caracteres. Tento encontrar paralelos para uma das discussões mais persistentes no futebol: a que gira em torno da presumida falta de vontade dos atletas, já que se compara a bola ao prato de comida.
A torcida e a crônica esportiva freqüentemente detectam sinais dela -a falta de vontade- em atletas, times ou gerações inteiras. Às vezes os próprios atletas a invocam -sempre nos outros e nunca em si mesmos.
(Nunca vi alguém dizer "estou sem vontade".) Técnicos, tenho a impressão, jamais admitem a inapetência em seus comandados, ao menos em público. Podem até criticá-los por falta de empenho, apatia, moleza, mas nunca atribuindo isso à tibieza do desejo... (A que, então?).
Acontece que o campo da falta de vontade tem subdivisões, cada uma com conotação bem diferente.
Quando a falta de estímulo e motivação estão relacionadas a privações -salários não pagos, por exemplo-, o julgamento é um. Quando se deduz que ela nasce do excesso -de dinheiro, bajulação ou baladas, acusações clássicas- é outro. E existe a possibilidade espinhosa do corpo mole deliberado; a falta de vontade de se aplicar como resultado da vontade de causar um estrago à mesa.
Notadamente, de impor ao "pai" uma derrota. Sabe a criança que, forçada a comer, reage passando mal? Volta e meia alguém ressuscita um episódio de uma entrevista com Leão ao Bola da Vez da ESPN Brasil -ora para atacá-lo, ora para me esculhambar. Recém-saído do Santos, perguntei se ele acreditava que os jogadores, insatisfeitos com alguma questão (especialmente ligada à convivência), poderiam, consciente ou inconscientemente, jogar menos do que são capazes para forçar uma mudança. Em vez de responder, ele condenou a pergunta. Passou-me um esculacho, disse que isso não era coisa nem sequer para se cogitar.
Mais ou menos como fez anteontem com Quartarolo, da Jovem Pan. Sempre achei difícil acreditar que um jogador atuasse mal de propósito, pondo em risco o resultado do jogo, o time, a própria carreira. Mudei de idéia após ouvir confissões... Ainda não me convenci de que alguém seja capaz de perder deliberadamente um pênalti decisivo para sacanear um técnico -mas inconscientemente, sem-querer-querendo, quem sabe? Chutando tão sem vontade, sem convicção, que a bola obedece ao subtexto e vai para fora?
Fome, todo jogador tem. Todos querem jogar e vencer. Dependendo da sua intensidade, encara-se qualquer osso duro: técnico difícil, rival chato, campo ruim. Mas pode-se matá-la quase por obrigação, sem gosto, sem desfrute. Cada jogo é só uma refeição engolida, mais nada.
Talvez parte do Corinthians esteja só tentando matar a fome, sem muita vontade de comer. Alguns, por desânimo e desalento com a eterna instabilidade e a falta de perspectiva; outros, por fastio crônico, que independe do que lhes é oferecido. Outros, talvez, para desmoralizar a autoridade doméstica. Na casa, falta pão e razão. Nesse clima conturbado, é difícil esperar outro resultado que não a indigestão, que pode ir além de um mal-estar passageiro.

soninha.folha@uol.com.br


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