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JOSÉ GERALDO COUTO
Cerimônia do adeus
Craque de duas bandeiras, colhido no vórtice da Guerra Fria, Puskas enriqueceu o mundo com o seu futebol
NÃO TIVE o prazer de ver jogar
o craque húngaro Ferenc
Puskas, que morreu ontem,
vítima do mal de Alzheimer -coincidentemente, a mesma doença que
levou há dois anos outro gênio do futebol, Leônidas da Silva.
Da infância, guardo a lembrança
de meu pai pronunciando com respeito quase religioso aquele nome
esquisito.
As únicas imagens que tenho de
Puskas são as das poucas e surradas
cenas da Copa do Mundo de 1954
que a TV de vez em quando reprisa.
Elas mostram um jogador baixinho e troncudo, com uma ameaça de
barriguinha e cara de bom sujeito.
Poderia ser o chefe de setor de contabilidade da firma, batendo sua bolinha de fim de semana. Mas, segundo consta, foi um dos maiores futebolistas que o mundo já viu.
Deve ter sido mesmo, pois em 84
jogos pela seleção húngara marcou
nada menos que 83 gols -uma média melhor que a de Pelé.
A trajetória de Puskas fala de um
futebol de outra época.
Para começar, pelo fato de ele ter
defendido duas seleções nacionais
(Hungria e Espanha), a exemplo de
outro monstro sagrado, Di Stéfano
(Argentina e Espanha).
Gandula na infância, como Maradona, Puskas também foi um garoto
prodígio que começou a encantar o
público antes de atingir a maioridade. Virou adulto no mesmo momento em que seu país entrava na órbita
soviética. O time em que atuava foi
encampado pelo Exército húngaro,
e o próprio Puskas virou tenente-coronel. Naqueles tempos de Guerra
Fria, o esporte era arma geopolítica.
Foi também um trauma político
que o levou ao exílio: a invasão soviética que, em 1956, soterrou as perspectivas de abertura do regime comunista húngaro. O Ocidente recebeu-o de braços abertos, como a tantos atletas de vários esportes que
atravessaram a Cortina de Ferro.
Não conheço a história em detalhes, mas tenho para mim que Puskas nunca se identificou com a farda
do Exército e nem com o papel de
dissidente. Só queria jogar em liberdade seu futebol excepcional.
Com a morte de Puskas, sobraram
só dois remanescentes da memorável Hungria da Copa de 1954: Buzanszky e Gyula. Do Brasil campeão
de 1958, felizmente, ainda estão aí
Pelé, Gilmar, Zito, Nilton Santos,
Djalma Santos, Zagallo, Bellini...
Devemos reverenciá-los em vida,
aprender com eles, ouvir seu testemunho inestimável de tempos quase míticos do futebol.
Em algumas cidades-estados da
Grécia Antiga, assim como em certas tribos indígenas, havia uma instância importante de debate e deliberação que era o "conselho dos anciãos".
Acho que já dei essa idéia aqui,
mas não custa reforçar: o futebol
brasileiro talvez ganhasse muito
com uma instituição desse tipo. No
mínimo, aprenderíamos a levar menos a sério nossos arroubos fúteis e
nossas cavernosas decepções.
PARABÉNS A VOCÊ
O aniversariante do dia é o Flamengo, nascido há 111 anos. Só em
1912 o rubro-negro se tornou time
de futebol, formado por dissidentes do Fluminense, o que levou o
tricolor Nelson Rodrigues a dizer
que o Fla e o Flu eram "os irmãos
Karamázov do futebol brasileiro".
Parabéns, flamenguistas. Seu clube
é como o Rio de Janeiro: muitos o
maltratam, mas ele é indestrutível.
NESTA DATA QUERIDA
Talvez o São Paulo coloque a segunda mão na taça amanhã. Depois
da apatia pós-derrota na Libertadores, a torcida mostrou seu apoio
à equipe. A recompensa vem com o
quarto título nacional, feito que
iguala o clube aos rivais Corinthians e Palmeiras. Cercado de são-paulinos (irmão, sobrinhos, primos), fico feliz por eles e por Muricy, técnico de fibra e integridade.
jgcouto@uol.com.br
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