São Paulo, sábado, 18 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ GERALDO COUTO

Cerimônia do adeus

Craque de duas bandeiras, colhido no vórtice da Guerra Fria, Puskas enriqueceu o mundo com o seu futebol

NÃO TIVE o prazer de ver jogar o craque húngaro Ferenc Puskas, que morreu ontem, vítima do mal de Alzheimer -coincidentemente, a mesma doença que levou há dois anos outro gênio do futebol, Leônidas da Silva.
Da infância, guardo a lembrança de meu pai pronunciando com respeito quase religioso aquele nome esquisito.
As únicas imagens que tenho de Puskas são as das poucas e surradas cenas da Copa do Mundo de 1954 que a TV de vez em quando reprisa.
Elas mostram um jogador baixinho e troncudo, com uma ameaça de barriguinha e cara de bom sujeito. Poderia ser o chefe de setor de contabilidade da firma, batendo sua bolinha de fim de semana. Mas, segundo consta, foi um dos maiores futebolistas que o mundo já viu.
Deve ter sido mesmo, pois em 84 jogos pela seleção húngara marcou nada menos que 83 gols -uma média melhor que a de Pelé. A trajetória de Puskas fala de um futebol de outra época.
Para começar, pelo fato de ele ter defendido duas seleções nacionais (Hungria e Espanha), a exemplo de outro monstro sagrado, Di Stéfano (Argentina e Espanha).
Gandula na infância, como Maradona, Puskas também foi um garoto prodígio que começou a encantar o público antes de atingir a maioridade. Virou adulto no mesmo momento em que seu país entrava na órbita soviética. O time em que atuava foi encampado pelo Exército húngaro, e o próprio Puskas virou tenente-coronel. Naqueles tempos de Guerra Fria, o esporte era arma geopolítica.
Foi também um trauma político que o levou ao exílio: a invasão soviética que, em 1956, soterrou as perspectivas de abertura do regime comunista húngaro. O Ocidente recebeu-o de braços abertos, como a tantos atletas de vários esportes que atravessaram a Cortina de Ferro.
Não conheço a história em detalhes, mas tenho para mim que Puskas nunca se identificou com a farda do Exército e nem com o papel de dissidente. Só queria jogar em liberdade seu futebol excepcional. Com a morte de Puskas, sobraram só dois remanescentes da memorável Hungria da Copa de 1954: Buzanszky e Gyula. Do Brasil campeão de 1958, felizmente, ainda estão aí Pelé, Gilmar, Zito, Nilton Santos, Djalma Santos, Zagallo, Bellini...
Devemos reverenciá-los em vida, aprender com eles, ouvir seu testemunho inestimável de tempos quase míticos do futebol.
Em algumas cidades-estados da Grécia Antiga, assim como em certas tribos indígenas, havia uma instância importante de debate e deliberação que era o "conselho dos anciãos".
Acho que já dei essa idéia aqui, mas não custa reforçar: o futebol brasileiro talvez ganhasse muito com uma instituição desse tipo. No mínimo, aprenderíamos a levar menos a sério nossos arroubos fúteis e nossas cavernosas decepções.

PARABÉNS A VOCÊ
O aniversariante do dia é o Flamengo, nascido há 111 anos. Só em 1912 o rubro-negro se tornou time de futebol, formado por dissidentes do Fluminense, o que levou o tricolor Nelson Rodrigues a dizer que o Fla e o Flu eram "os irmãos Karamázov do futebol brasileiro".
Parabéns, flamenguistas. Seu clube é como o Rio de Janeiro: muitos o maltratam, mas ele é indestrutível.

NESTA DATA QUERIDA
Talvez o São Paulo coloque a segunda mão na taça amanhã. Depois da apatia pós-derrota na Libertadores, a torcida mostrou seu apoio à equipe. A recompensa vem com o quarto título nacional, feito que iguala o clube aos rivais Corinthians e Palmeiras. Cercado de são-paulinos (irmão, sobrinhos, primos), fico feliz por eles e por Muricy, técnico de fibra e integridade.


jgcouto@uol.com.br

Texto Anterior: Basquete: CBB divulga tabela do nacional masculino
Próximo Texto: O Datafolha no Brasileiro: Campeonato distancia os seus dois extremos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.