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FUTEBOL
O segundo dia
JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA
Ninfa leitora, ninfo leitor, estava eu pensando aqui com
meus botões (com meus times de
botões, é claro) sobre como deve
ser a vida de um jogador no exterior. Imagino que ele chegue numa noite estrelada e seja recebido
no aeroporto por dirigentes, por
torcedores, por um tradutor, por
seu empresário, por jornalistas
etc... Depois, deve ser levado a um
bom hotel, onde há uma bela cesta de boas-vindas, então ele deve
dormir até o dia seguinte.
Até aí está tudo muito bem, está
tudo muito bom, ele vive num paraíso. O purgatório começa no segundo dia. Aí começa a vida de
verdade, cheia de problemas, confusões, cobranças e tropeços.
Logo de cara há o problema
geográfico. O jogador não apenas
mudou de cidade. Mudou de país.
Não sabe o caminho para o estádio, não sabe onde fica o supermercado, não sabe onde ficam as
churrascarias e talvez elas nem
existam. Ou, se existirem, ele terá
que escolher entre espetinho de filé de gato e miolos de macaco ao
molho pardo. O filé de gato, pelo
menos, ele já conhece.
Quando chegar ao clube, ele pode encontrar um grupo fechado. E
certamente terá inimigo: o seu reserva, um garoto de 18 anos que
nasceu naquela cidade e sonhava
em ser titular antes da vinda do
maldito brasileiro. Aliás, os jogadores brasileiros são mais ou menos como as prostitutas francesas
no século passado: têm reserva de
mercado, são supervalorizados e
odiados pela concorrência local.
Então, o técnico explica seu esquema de jogo. Provavelmente
não será nada muito esquisito,
mas, explicado em sérvio ou croata, qualquer 4-4-2 vira um tratado de física quântica.
A língua, aliás, é um capítulo à
parte. A grande parte dos jogadores só fala duas línguas, o português e o futebolês, que é aquela
língua que eles usam para dar entrevistas. Quando têm que aprender algo como chinês ou alemão,
devem sofrer um bocado. Eu, que
quando quero um bife mal passado no exterior peço "one steak
bad past", conheço muito bem esse problema.
A solidão talvez seja o maior
problema. Romário solucionou a
questão levando sua turma de futevôlei, e muitos levam famílias e
mulheres. Mas a convivência diária com a família e com sua mulher pode não ser tão divertida.
Depois de um mês passando o dia
inteiro juntos, muitos casais devem começar a pensar seriamente
em divórcio. Ou em assassinato.
Há, ainda, diferenças naturais
como o clima. Zé Elias foi para a
Ucrânia jogar no FC Metalurh
Donetsk, mas, depois de sentir o
frio do lugar, voltou para o calor
de Santos. E não deve ser fácil espairecer. Algumas diversões continuam as mesmas, como os bordéis, mas TV e cinema podem ser
difíceis de entender, a não ser que
haja alguma retrospectiva de cinema mudo, e dificilmente o jogador conseguirá montar uma
turminha para um pagode.
Com tudo isso, não é à toa que
muitos bons jogadores não fazem
sucesso no exterior. O problema é
que muitos vão pensando só no
primeiro dia. E, no segundo, é que
a vida começa de verdade.
A coceirinha
Outro motivo para o jogador
falhar no exterior é a nada desprezível pressão psicológica para dar certo. "Vencer na América" -ou na Europa ou na
Ásia- é posto como obrigação
para quem sai do país. E quem
não consegue só tem uma saída: mentir descaradamente. O
jeito é falar coisas como: "Sim,
fiz muito sucesso no Dudinka
de Vladivostok, apesar de eu ter
ficado na reserva, de termos
caído para a segunda divisão e
de eu ter perdido os dedos do
pé por causa do frio. O pessoal
me adora por lá e essa extradição não quer dizer nada, até
porque a acusação é falsa. Eu
não matei aquele maldito técnico! Não matei! Ele se suicidou
com os cadarços da minha chuteira, foi só isso. Alguém pode
tirar essas algemas agora? Dá
uma coceirinha...".
E-mail torero@uol.com.br
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