São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

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FUTEBOL

O segundo dia

JOSÉ ROBERTO TORERO
COLUNISTA DA FOLHA

Ninfa leitora, ninfo leitor, estava eu pensando aqui com meus botões (com meus times de botões, é claro) sobre como deve ser a vida de um jogador no exterior. Imagino que ele chegue numa noite estrelada e seja recebido no aeroporto por dirigentes, por torcedores, por um tradutor, por seu empresário, por jornalistas etc... Depois, deve ser levado a um bom hotel, onde há uma bela cesta de boas-vindas, então ele deve dormir até o dia seguinte.
Até aí está tudo muito bem, está tudo muito bom, ele vive num paraíso. O purgatório começa no segundo dia. Aí começa a vida de verdade, cheia de problemas, confusões, cobranças e tropeços.
Logo de cara há o problema geográfico. O jogador não apenas mudou de cidade. Mudou de país. Não sabe o caminho para o estádio, não sabe onde fica o supermercado, não sabe onde ficam as churrascarias e talvez elas nem existam. Ou, se existirem, ele terá que escolher entre espetinho de filé de gato e miolos de macaco ao molho pardo. O filé de gato, pelo menos, ele já conhece.
Quando chegar ao clube, ele pode encontrar um grupo fechado. E certamente terá inimigo: o seu reserva, um garoto de 18 anos que nasceu naquela cidade e sonhava em ser titular antes da vinda do maldito brasileiro. Aliás, os jogadores brasileiros são mais ou menos como as prostitutas francesas no século passado: têm reserva de mercado, são supervalorizados e odiados pela concorrência local.
Então, o técnico explica seu esquema de jogo. Provavelmente não será nada muito esquisito, mas, explicado em sérvio ou croata, qualquer 4-4-2 vira um tratado de física quântica.
A língua, aliás, é um capítulo à parte. A grande parte dos jogadores só fala duas línguas, o português e o futebolês, que é aquela língua que eles usam para dar entrevistas. Quando têm que aprender algo como chinês ou alemão, devem sofrer um bocado. Eu, que quando quero um bife mal passado no exterior peço "one steak bad past", conheço muito bem esse problema.
A solidão talvez seja o maior problema. Romário solucionou a questão levando sua turma de futevôlei, e muitos levam famílias e mulheres. Mas a convivência diária com a família e com sua mulher pode não ser tão divertida. Depois de um mês passando o dia inteiro juntos, muitos casais devem começar a pensar seriamente em divórcio. Ou em assassinato.
Há, ainda, diferenças naturais como o clima. Zé Elias foi para a Ucrânia jogar no FC Metalurh Donetsk, mas, depois de sentir o frio do lugar, voltou para o calor de Santos. E não deve ser fácil espairecer. Algumas diversões continuam as mesmas, como os bordéis, mas TV e cinema podem ser difíceis de entender, a não ser que haja alguma retrospectiva de cinema mudo, e dificilmente o jogador conseguirá montar uma turminha para um pagode.
Com tudo isso, não é à toa que muitos bons jogadores não fazem sucesso no exterior. O problema é que muitos vão pensando só no primeiro dia. E, no segundo, é que a vida começa de verdade.

A coceirinha
Outro motivo para o jogador falhar no exterior é a nada desprezível pressão psicológica para dar certo. "Vencer na América" -ou na Europa ou na Ásia- é posto como obrigação para quem sai do país. E quem não consegue só tem uma saída: mentir descaradamente. O jeito é falar coisas como: "Sim, fiz muito sucesso no Dudinka de Vladivostok, apesar de eu ter ficado na reserva, de termos caído para a segunda divisão e de eu ter perdido os dedos do pé por causa do frio. O pessoal me adora por lá e essa extradição não quer dizer nada, até porque a acusação é falsa. Eu não matei aquele maldito técnico! Não matei! Ele se suicidou com os cadarços da minha chuteira, foi só isso. Alguém pode tirar essas algemas agora? Dá uma coceirinha...".

E-mail torero@uol.com.br


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