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São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2003

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Thais Prioli, 12, ganha na Justiça o direito de jogar em time de meninos no Paulista

O XX da questão

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Thais (centro) posa com seus companheiros ontem, em Itapetininga, após treino do São Paulo Center, time pelo qual jogou no Paulista graças a uma ação na Justiça


MARIANA LAJOLO
ENVIADA ESPECIAL A ITAPETININGA

O pai, furioso, aproximou-se do treinador e disparou: "Por que uma menina está no time e o meu filho não?". Ouviu uma resposta simples: a garota bate um bolão.
Foi a primeira vez que Thais Helena Prioli, 12, sentiu-se discriminada pelo fato de ser a única mulher em um time de meninos.
Apesar de ter sido defendida pelo técnico, preferiu deixar a equipe de futsal da Sabesp em maio.
A segunda foi na semana passada. Mas, desta vez, Thais reagiu.
Com o apoio da mãe e do São Paulo Center, seu time em Itapetininga (163 km a oeste de São Paulo), ganhou na Justiça o direito de jogar no Campeonato Paulista.
Depois de disputar boa parte do torneio, Thais havia sido impedida pela Secretaria da Juventude, Esportes e Lazer do Estado de São Paulo, organizadora do evento, de continuar em campo. O argumento: não existem competições mistas de futebol. A mistura poderia expô-la a constrangimentos. O regulamento, porém, não afirma que o torneio é só masculino.
"Se ela jogasse mal, ninguém iria reclamar. Os adultos é que são preconceituosos, maliciosos. Os meninos sempre a respeitaram e a adoram", acredita a mãe, Márcia.
Thais saiu vitoriosa dos tribunais, mas perdeu em campo. Ainda abalado pela polêmica da suspensão, seu time foi derrotado nas semifinais da fase sub-regional do torneio. Ganhou, no entanto, uma nova celebridade.
"Na segunda-feira, ela saiu para comprar um tênis de futebol com a mesada que havia recebido e me ligou para dizer que não ia à escola. Todo mundo estava apontando para ela na rua", conta a mãe.
Márcia foi uma das pessoas que tiveram de superar preconceitos em nome da filha, que, aos cinco anos, contou que queria ser jogadora quando crescesse. Viúva desde a gravidez, ela abandonou o sonho de ver a garota dançando de sapatilhas ou cortando bolas de vôlei. "Sofri muito. Na época, minha mãe era viva [morreu em 99] e também torcia o nariz. Mas é o que ela quer", afirma a mãe, que é evangélica como a filha.
Thais deu primeiros chutes no Sesi de Itapetininga. Começou entre as meninas, mas gostava mesmo era de assistir aos treinos masculinos e de aproveitar os intervalos para bater bola sozinha.
Sua habilidade chamou a atenção do professor, que procurou Márcia e pediu autorização para colocá-la entre os meninos.
"Ela é uma menina diferente das outras. Praticamente nasceu em um campo", afirma Mario de Mello Jr., seu atual treinador. "Além de ter uma visão de jogo muito boa, não tem preconceito de jogar com os meninos e consegue impor respeito. Só falta ser menos preguiçosa para marcar."
A habilidade de Thais não encontra respaldo genético. Segundo a mãe, ninguém na família jamais se interessou em jogar futebol. Nem seu outro filho, Hugo, 23, que mora com as duas.
Em campo, porém, Thais mostra que o fato de ser a única com cromossomos XX -que determinam o sexo feminino- e não ter antecedentes "boleiros" não a tornam mais frágil. Muito pelo contrário. A chance de perdê-la deixou em pânico seus colegas de treino. "Ela cruza, cobra o lateral, bate pênalti... Como é que a gente ia fazer sem ela?", disse o lateral-esquerdo Luís Carlos da Silva, 12.

Fome de bola
Canhota e ponta-esquerda, Thais é a cobradora de escanteios e costuma ouvir nos treinos incentivos para fazer gols olímpicos. Quem sofre é o goleiro Fábio Souza, 10. "Às vezes eu nem consigo defender os chutes dela. Minha mão fica toda ardida", diz ele.
Além de poderem perder uma das peças fundamentais do time, os meninos ficaram revoltados com o que consideram preconceito. Para eles, não há diferença entre Thais e os outros jogadores.
Talvez só haja uma, o fato de ela ser quase um mascote e uma "arma secreta". "A gente nunca pensou se ela é menina ou não. Ela joga bem, gostamos dela. É isso que importa", disse Ivan de Jesus.
"Os outros times olham e acham que será fácil ganhar o jogo só porque ela é menina. Mas, depois, na hora da partida, eles vêem o que é bom para tosse", brinca o atacante de 12 anos.
Quando está em campo, Thais só se diferencia dos companheiros por causa dos cabelos.
Vaidosa, ela deixou os elásticos e adotou uma faixa na cabeça para não quebrar os fios, que quer deixar mais compridos. Mais bonita, ainda faz sucesso com seus paqueras, que sempre têm a mesma ligação que ela com o futebol.
A paixão da menina pelo esporte está estampada por todas as paredes de sua casa, principalmente nas da garagem, que a mãe já desistiu de pintar de branco para cobrir as marcas de bola.
No quarto, decorado em tons de rosa, dividem o mesmo espaço dezenas de bichinhos de pelúcia e medalhas, pôsteres, fotos e adesivos do São Paulo e de Kaká.
Do clube do Morumbi, Thais guarda a recordação das três vezes em que foi mascote do time, em excursões organizadas por sua equipe, que é uma franquia das escolinhas de futebol do São Paulo. Em uma delas, deu azar e perdeu o título paulista deste ano para o Corinthians. Para piorar, não conheceu seu ídolo. Deu azar: Kaká, machucado, não jogou.
Thais sonha em vestir a camisa tricolor, mas sabe que o futebol feminino não recebe aqui o mesmo incentivo de outros países.
Para tentar viver da bola, já vasculha a internet em busca de informações sobre os times do exterior e planeja a aposentadoria: quer estudar fisioterapia. "Aí eu vou poder continuar no campo, trabalhando com o futebol."


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