São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 2006

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JOSÉ ROBERTO TORERO

No meio do caminho tinha uma bola


Em versos e comentários sobre futebol, Carlos Drummond de Andrade passa a compreender a torcida. E faz parte dela


"FUTEBOL se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma."
Estes quatro versos são de um dos maiores escritores do país: Carlos Drummond de Andrade. Mesmo sem jamais se propor a ser um cronista de futebol, poucos escreveram tão bem sobre o assunto quanto este vascaíno.
Ele não falava de táticas ou dos grandes jogos da rodada. Seu principal assunto era o torcedor. E acho até que ele sentia uma certa inveja deste torcedor, capaz de gestos de amor grandiloquentes e de uma fé quase religiosa.
Em seu primeiro texto sobre futebol, em 1931, ele narra um episódio em que, passando de bonde pelo centro de Belo Horizonte, vê uma multidão escutando um jogo de futebol pelo rádio. Um time mineiro jogava no Rio de Janeiro e 2.000 torcedores ficaram ali, na avenida Afonso Pena, a torcer de ouvido.
CDA fica pasmo ao ver esse exemplo de paixão: "Não posso atinar bem como uma bola, jogada à distância, alcance tanta repercussão no centro de Minas".
Vinte e três anos depois, durante a Copa da Suíça, ele já aceita melhor o insano amor do torcedor: "Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas".
Na Copa seguinte, a da Suécia, pode-se dizer que, se ele ainda não está na arquibancada, pelo menos, já observa a festa da janela: "Como deixar de lançar papeizinhos ao ar, sujando a cidade mas engrinaldando a alma, e de estourar bombas da mais pura felicidade e glória, mesmo que arrebentemos os próprios tímpanos".
Em 1962, Drummond está ainda mais animado e chega a sugerir alguns jogadores para o ministério: "Reparem que o Gabinete se compõe de 13 ministros e um presidente de Conselho. Nossos 11 campeões são 14, inclusive Pelé, o técnico Aimoré e o dr. Gosling. Trata-se de um ministério escolhido pelo destino, e é só dispor cada homem na posição correta".
Vem a derrota na Copa de 66, e CDA faz um belo poema intitulado "Aos Atletas": "Hoje, manuscritos picados em soluço chovem do terraço chuva de irrisão. Mas eu, poeta da derrota, me levanto sem revolta e sem pranto para saudar os atletas vencidos".
Há nesta poesia um tema que será explorado mais algumas vezes: a derrota como fato cotidiano e até nobre da vida; a derrota como parte integrante e indissociável da vitória.
1970 é o ano em que CDA mais faz textos sobre futebol. E é interessante notar que ele se coloca totalmente a favor da conquista da Copa, ao contrário de parte da esquerda da época. Tanto que até escreve a "Oração do brasileiro", uma oração em que ele pede ajuda a Deus para ganhar o Mundial do México.
Drummond transformara-se definitivamente em torcedor. E fica surpreso com essa transformação: "Que é de meu coração? Está no México, voou certeiro, sem me consultar, instalou-se, discreto, num cantinho qualquer, entre bandeiras tremulantes, microfones, charangas, ovações, e de repente, sem que eu mesmo saiba como ficou assim, ele se exalta e vira coração de torcedor, torce, retorce e se distorce todo, grita: Brasil!, com fúria e amor".
É uma distância tremenda daquele sujeito de 40 anos atrás, que não entendia como os mineiros podiam torcer por jogadores que não viam. Ele finalmente passa a compreender a torcida. E faz parte dela.

Dia de futebol
Há alguns anos, foi lançado um ótimo livro com tudo o que Drummond escreveu sobre futebol. A pesquisa foi feita por dois de seus netos, Luís Maurício e Pedro Augusto, e eles editaram, pela Record, o livro "Quando é dia de futebol".

torero@uol.com.br


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