São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quênia pós-guerra corre por Pequim

Tradição nas provas de resistência e vida de atletas ficam em risco com violência étnica que atrapalha treinos e mata

Atletas fogem do centro de treinamento de Eldoret por riscos de morte, e campeões são acusados de financiar ataques contra etnia rival


Roberto Schmidt/France Presse
Fundistas do Quênia percorrem estrada de Eldoret, que abriga centros de treinamento no país


FRANÇOIS AUSSEILL
DA FRANCE PRESSE, EM ELDORET

Os fundistas quenianos, orgulho nacional, viram-se envolvidos no meio da violenta tormenta pós-eleições no país, e alguns já pagaram com a vida na região do vale do Rift, uma das mais afetadas. A maioria desses atletas de nível mundial é do mesmo grupo étnico, os kalenjin, que apoiaram maciçamente Raila Odinga, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 27 de dezembro pelo presidente Mwai Kibaki (da etnia kikuyu, a mais numerosa do país.)
Quase todos são originários do vale do Rift (oeste do Quênia), cenário dos atos de violência mortal entre as duas etnias. Os centros de treinamento desses atletas ficam na região do Eldoret, onde um incêndio provocado numa igreja causou pelo menos 30 mortes no último dia 1º de janeiro. Nesse dia, Lucas Sang, membro do revezamento 4 x 400 m na Olimpíada de Seul, em 1988, perdeu sua vida. Seu corpo mutilado foi encontrado no dia seguinte em Eldoret, onde havia se tornado empresário agrícola, como outros tantos campeões.
Um segundo atleta, o maratonista Wesley Ngetich, morreu em 21 de janeiro devido a uma flecha envenenada no distrito de Trans Mara, ao sul. A violência perturbou especialmente a preparação dos maratonistas, que se encontravam na impossibilidade de correr longas distâncias em rodovias cheias de postos de controles com homens armados e em bosques pouco seguros.
"Não havia nenhuma possibilidade de treino. E, quando havia, as pessoas perguntavam por que eu treinava se o país estava em guerra", lembra John Kibowen, bicampeão mundial nos 4 km de cross-country. Os distúrbios sujaram parte da imagem desses campeões, ativos ou aposentados, cujo status social e potencial financeiro os promovem a autênticos líderes de suas comunidades.
Em um informe sobre a crise financeira de 21 de fevereiro, o International Crisis Group (ICG, que tenta prevenir conflitos no planeta) deu a entender que, segundo fontes variadas, alguns atletas financiaram as milícias kalenjin para efetuar ataques contra os kikuyu.
O próprio ICG explica que a maior parte dos depoimentos sobre a morte de Sang dizia que ele fora morto quando comandava um ataque kalenjin. Porém Moses Tanui, ex-campeão do mundo dos 10.000 m, amigo e sócio em negócios de Sang, assegura que esportistas não participaram dos atos. "Reafirmamos que nós, atletas, somos firmes defensores da paz. Em janeiro, demos abrigo e protegemos competidores [de outras comunidades] que estavam aqui até que a polícia os escoltasse", disse Tanui, em entrevista em hotel em Eldoret.
Apesar da diminuição dos incidentes violentos, que já causaram 1.500 mortes nas últimas semanas, as conseqüências continuam sendo danosas ao atletismo queniano. O Quênia decepcionou neste mês no Mundial de atletismo indoor, em Valência (Espanha), e a preparação para a Olimpíada de Pequim está ameaçada.
"Temos que encarar, mas vai ser difícil. Temos que dar o máximo para compensar", comentou Kibowen. Outros preferem deixar Eldoret. Os campeões mundiais Luke Kibet (maratona, 2007) e Janeth Jepkosgei (800 m) treinam respectivamente na capital, Nairóbi, e na Namíbia.


Tradução de MÁRVIO DOS ANJOS


Texto Anterior: Xico Sá: RDG, o ranking David/Golias
Próximo Texto: Ação: Do lado de fora
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.